Alerta: Spoilers abaixo.
O Império dos Mutantes (La Mort Vivante, 1958) é o primeiro livro que li deste autor, o francês Stefan Wul (1922-2003), do qual descubro ter sido dentista e apaixonado por ficção científica. Figura atuante no meio de seu país, sua obra mais famosa talvez seja a adaptação de animação O Planeta Fantástico (1973), a partir de Oms en série (1957).
Em um futuro onde a Humanidade vive em "planetas-paraísos de sistemas longínquos", nosso sistema solar original ficou apenas com Marte e Vênus habitados por sociedades onde a tecnologia se retraíra, e a Terra era proscrita e virtualmente inabitável, após catástrofes provocadas pela capacidade destrutiva dos seres humanos. O único lugar na Terra, descrito, são o que um dia foram os Montes Pirineus, erguendo-se do oceano que engloba quase toda a superfície do planeta junto com outros pontos mais altos.
A história começa em Vênus (sendo escrita em uma época em que se podia ainda crer em Vênus e Marte habitáveis sem forçar muito a barra), onde o protagonista, um biólogo, é censurado pela religião por seus experimentos com óvulos de anfíbios, deixando claro que é uma sociedade que não gosta de ciência e tecnologia, exatamente pelas desgraças do passado. A religião aqui, que sugere alguma vertente de cristianismo neste futuro não determinado, apela sempre a uma prudência a um ponto estagnante.
A fustração do biólogo é captada muito oportunamente por um contrabandista de artefatos - livros e microscópios - da Terra que, com o tempo, acaba cooptando-o para trabalhar para sua chefe na Terra, onde todos são proibidos de ir.
O trabalho envolve a clonagem da filha morta desta chefe, com resultados bastante perturbadores.
Achei a história com uma pegada distante de Frankenstein (resenha minha aqui), de Mary Shelley, de onde se acostumou com a ideia de que a ciência é uma vilã - quando o correto seria, a falta de ética é a vilã, como o é em qualquer campo. Dado momento, o protagonista, defronte os horrores que ajudou a criar, passa a culpar a religião por manter a ciência na rédea curta, em vez de na verdade estimulá-la, podendo então combater conhecimento com conhecimento.
Mas há outras ligações: se o autor estava pensando especialmente no Frankenstein do cinema, acabou gerando uma curiosa mistura de ficção científica com gótico, em um cenário pós-apocalíptico. Há o castelo decadente, tão isolado quanto arruinado, criptas por perto, um laboratório onde pesquisas jamais tentadas antes ou há muito tempo são executadas, um pequeno elenco de pessoas excêntricas ou de aspecto repugnante por este ou aquele motivo. Há também um grande pecado pairando no ar, que atormenta a todos os envolvidos e será a fonte da ruína. É um mundo doente, onde todos precisam se precaver contra a radiação, havendo poucos lugares habitáveis e nenhum sendo de conforto.
Há ainda noções como uma máquina auto-replicante que, consumindo os recursos ao redor, acabaria por ocupar - ou substituir - o planeta inteiro, sendo que ainda no caso esta criatura é um organismo, do qual pendem descrições de mutações voláteis de órgãos, feições e formas orgânicas dignas de animes que ainda seriam vistos décadas adiante - ou talvez já tivessem sido lidas em alguma escrito ou autor lovecraftiano. A evolução do estágio inicial até este resultado reforça a ideia de um namoro, senão com o gótico, com o terror, incluindo aí gêmeas com poderes telepáticos e a capacidade para maldade, lembrando um pouco The Midwich Cuckoos (1957), de John Wydham, que gerou duas adaptações para o cinema (1960 e 1995).
Dos pontos baixos, pensei no desenvolvimento de personagens. Só dois ali realmente contam, tanto o protagonista quanto a chefe, e esta mesmo assim pouco se fala sobre ela ou mesmo a operação de contrabando que comanda. O pai da criança não é sugerido, do que eu tivesse lido, por exemplo. Dado momento, ela se torna pouco mais do que uma donzela em apuros, embora isso me pareça que também a questão do gótico: sendo a mãe do monstro, viver o pesadelo que passam a se encontrar especialmente a destrói por dentro.
Apesar do que, achei o livro interessante, pelos motivos acima.
O Império dos Mutantes
184 p.
Colecção Argonauta