quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Certamente, Talvez

Certamente, Talvez, por Arkady e Boris Strugatsky (1980)

Sabem quando você precisa se concentrar para terminar um trabalho, e você apenas não consegue? Não consegue, percebam, não por ansiedade, dispersão ou a última treta imperdível no facebook ou twitter: não, você está lá, sério, compenetradão, se bobear até gostando do que tá fazendo -- não, do que quer fazer, seja  para a faculdade, para o trabalho, para alguém ou para si mesmo... e simplesmente não consegue? Não consegue porque o telefone insiste em tocar o dia inteiro por qualquer motivo ou motivo nenhum, porque a campainha da porta toca como nunca, porque alguém aparece "só pra dizer uma coisinha", e assim, sucessivamente? Sabem esses dias?

Que parece até que o universo conspira contra?

Os irmãos Strutagtsky certamente sabiam, e transformaram um dia assim em um livro.

Certamente, Talvez foca nos esforços do cientista Dimitri Malianov em terminar o que pode ser sua obra máxima, no terreno da Física, e em um grande avanço para ciência mundial - se ao menos o deixassem trabalhar em paz.

Nos dois dias da trama, um desfile de estranhas ocorrências e personagens excêntricas passam pelo apartamento do protagonista, trazendo sempre consigo algo um ar de quem sabe mais do que está disposto a revelar, deixando o pobre Malianov cada vez mais perdido e confuso.

Entre os tipos excêntricos também estão seus amigos cientistas, percebendo que, cada um em sua área, estão com alguma espécie de contribuição extremamente importante prestes a concluir, mas que em suas vidas se deparam com sequências de interrupções inexplicáveis. Tudo isso sob alguma vodca, patês ou chá, com o clima de paranoia casando com a descrição de um calor de verão inclemente, apartamentos bagunçados e um princípio de decadência urbana cotidiana. Paranoia esta crescente junto do sentimento, assim como as sucessivas hipóteses sobre quem está contra os próximos e vitais passos do desenvolvimento científico da sociedade.



Dias de Eclipse (1988), adaptação para o cinema.

Não é das leituras mais convencionais. É um livro sobre análises sobre uma situação incomprovável e indescomprovável  de um problema, que fica à mercê de hipóteses favoritas de cada um (ou não), o que significa que é um livro baseado em diálogos.

Mais do que diálogos, fragmentos, conforme quando começa cada capítulo, uma sutil mudança de câmera desde a última situação se desenrolando, pegando um diálogo pelo meio, embora isso não trunque a compreensão do texto. Apenas apresenta ao leitor o ponto de vista dos personagens, em que há especulação demais e certezas de menos.



Certamente, Talvez
120 p.
Civilização Brasileira

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Planetário...

Estreando como colunista semanal de FC no blog do Planetário da Gávea. :) Primeiro texto, sobre o aniversário de Júlio Verne, sexta dia 8 agora.

Vai ser divertido. :)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Zigurate - Uma Fábula Babélica

Outra resenha resgatada, tb de um livro do Max. Segue texto na íntegra.
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Zigurate - Uma Fábula Babélica

Max Mallmann. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2003. 220 págs.



Ok, ele conseguiu novamente.

Comprei ontem o livro, 27 de Outubro de 2003, dia do lançamento carioca, evento no qual reuniram-se bons companheiros da Ficção-Científica, e li ainda antes de ir dormir, umas trinta páginas - e hoje mesmo o terminei, à espera de um professor que não apareceu na faculdade, somando um total de umas quatro, quatro horas e meia para liquidar suas cerca de 220 páginas.

Falo isto não para me gabar, mas para dizer que, quem gostou de Síndrome de Quimera, de uns três anos antes, do mesmo Max Mallmann, vai encontrar em Zigurate a mesma prosa fluída e enxuta que pega o leitor pela mão e vai conduzido em um rápido deslizar, num só fôlego, até o final do livro.

Zigurate é sobre dois imortais, um homem e uma mulher, Lugal e Nin, que estão entre nós pelo menos desde a época dos Sumérios; e duas pessoas normais que tem suas vidas mudadas ao cruzarem seu caminho. Duas tramas, uma para cada um, desenrolam-se no livro: entre Paris e Edimburgo, Sophie Brassier, uma jovem antropóloga com pouco tempo de vida - sofrendo uma enfermidade sem cura além de uma condição cardíaca - acha pistas através de registros históricos que a levam cada vez mais obsessivamente em busca dos imortais, acabando por encontrar Lugal. No Rio, temos a história paralela que se passa com Ray Stern, consultor de marketing americano, contratado para organizar a campanha de um político corrupto, que acaba encontrando - e se apaixonando - por Nin. A história de Sophie, e depois de Lugal e Sophie, é pontuada de uma certa melancolia, refletindo a imagem que se tem das cidades onde ocorre a trama. A história de Ray e Nin, refletindo a imagem que se tem do Rio de Janeiro, é agitada, apimentada e violenta, virando um thriller de ação muito bem desenvolvido - e este reflexo também se dá nos comportamentos respectivos de Lugal e Nin, como peixes em seus respectivos aquários, por assim dizer. As cidades são muito bem caracterizadas - nunca estive em Paris ou Edimburgo para constatar isto, mas ao menos me convence; e o Rio de Janeiro me saiu inconfundível.

Sophie e Lugal terão uma história curta cheia de perguntas, respostas, e poucas certezas no final - apenas aquelas que realmente importam. Ray e Nin terão uma história rápida e violenta, sem tempo para perguntas, porém repleto de respostas, e com um súbito final revelando uma certeza que possa valer à pena. O fim, como não podia deixar de ser, acaba sendo tomado pela melancolia - e a engraçada sensação do que é apresentado não deixar de ser o mais feliz possível dos fins.

Uma comparação com outras obras do autor acaba sendo inevitável - e como só de Mallmann conheço Síndrome de Quimera... de cara, não deixa nada a dever ao primeiro. Achei graça de Zigurate ter, assim como Síndrome de Quimera (que vai ganhar uma edição francesa!), um protagonista com uma condição cardíaca, além de uma brincadeira com a idéia da imortalidade. Claro, em Síndrome, o absurdo reina, enquanto que o fora do comum é representado apenas pelos imortais - e não apenas por isso, é uma história totalmente própria.

Alguns dos personagens secundários chegam a um nível quase cartunesco, no estereótipo, e para a levada de humor interno de Zigurate, todos eles com um charme pessoal, característico - detalhe para Neném da Candonga.

A citações sumérias permeiam o livro todo, com direito à escrita cuneiforme para numerar os capítulos. Versos do poema épico mais antigo que se tem, sobre mítico rei Gilgamesh, abrem as partes diferentes do livro, além de ficar revelado qual sua importância na história própria de Lugal e Nin. Impressionam também certas recriações históricas de Mallmann, por onde Sophie vai tirando suas conclusões. Uma ambientação extremamente competente, sem incorrer em excessos de descrição desnecessários, sem comprometer o ritmo da história.

Ritmo este ágil; Mallmann é extremamente hábil em fazer suas mudanças de cena, do que obviamente lhe faz valer sua experiência como roteirista profissional, dando a impressão que Zigurate seria facilmente adaptável para as telas do cinema. Nós aqui platéia estamos torcendo bastante para que isto, algum dia, ocorra. (Luiz Felipe Vasques)

Sítio do livro: www.zigurate.com

Síndrome de Quimera

Resgatei, de um endereço que não tem mais, uma antiga resenha minha sobre Síndrome de Quimera, do meu saudosíssimo Max Mallmann. Esta e a de Zigurate devem estar entre as minhas primeiras, e por mais do que isso eu tenho um certo carinho por esses texto. Na íntegra, segue como publicado originalmente em 29 de Janeiro de 2006:
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Síndrome de Quimera

Max Mallmann. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 2001. 100 págs.

    Síndrome de Quimera, o terceiro livro do gaúcho Max Mallmann, atualmente roteirista da Rede Globo, é, no mínimo, insólito.

   Uma história na melhor tradição do realismo fantástico latino-americano, Mallmann nos conta uma história repleta de surrealismo sem perder de vista o quotidiano, com tons de tragédia sem entretanto nunca perder o bom-humor. Os personagens são a princípio tipos comuns, com suas vidas normais, do pano de fundo da cidade - a não ser por detalhes estranhos: uma personagem tem os olhos brilhantes como os de um vampiro; outro, de vez em quando, para relaxar do dia a dia, põe o cérebro de molho - literalmente -; e o próprio protagonista tem seus problemas, com uma pequena serpente que lhe envolve o coração... falar mais é começar a estragar a surpresa.

   Mas basta dizer que, pessoalmente, o tratamento dado ao caso tem um quê de Neil Gaiman, autor da série de quadrinhos Sandman: as coisas são surreais apenas porquê são, sem nenhuma fanfarra ou pseudoexplicação esotérica-mística - e isso não impede que o surreal seja um ótimo vizinho, ou companheiro de mesa de bar.

   São cem páginas de texto que vão nos levando como se fosse uma agradável conversa de bar regada com muita cerveja, onde aliás a história começa - após uma apresentação no capítulo 1 -, desenrolando-se com uma fluidez que convida o leitor a simplesmente devorar o livro: começou, não tem muito como largar. (Luiz Felipe Vasques)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

As Canções da Terra Distante

 As Canções da Terra Distante, por Arthur C. Clarke (1986)

Ler um romance de Arthur C. Clarke que me seja inédito é prazer cada vez mais raro. As Canções da Terra Distante foi lançado no Brasil em 86 pela Nova Fronteira, mas só agora consegui ler. Havia já lido o conto original, de mesmo nome, que saiu na coletânea O Outro Lado do Céu (NF, 1984).

De saída, antes de engrossar com os spoilers, há de notar uma agradável melancolia das saudades de tudo que um dia já foi, e daquilo e daqueles que se passa a conhecer, amar, mas que terão que ser deixados para trás. Sendo ainda uma história de navegação, a perda sentida embala também nas canções apresentadas da Terra distante. Ouço um distante eco com sotaque lusitano?

No Quarto Milênio, na expectativa do fim do sistema solar com a explosão do Sol em nova, a Humanidade monta grandes naves-arca com milhares de refugiados e parte para as estrelas, em busca de, como chamam hoje em dia, exoplanetas de ambiente compatíveis com o organismo humano.

A última dessas naves, por questões técnicas, para em uma colônia já estabelecida séculos antes, batizada com o nome de nome da antiga deusa do mar grega, Thalassa, um mundo primariamente oceânico com pouca superfície de terra firme onde a pequena colônia humana prospera.

Os visitantes passarão dois anos nos reparos (a reconstrução de um escudo de gelo, destruído, para absorver o impacto de matéria interestelar), antes de seguir viagem: e o choque cultural entre ambos os grupos, por mais diminuto que fosse a tripulação desperta do longo sono para a missão, é inevitável - isso, em um grande resumo.

Os thalassianos são de uma geração de naves semeadoras anteriores a recém-chegada Magalhães, quando material embrionário era despachado para as estrelas, em vez de refugiados congelados por criogenia como com a Magalhães: a ideia era um processo de desenvolvimento levado primariamente por máquinas, antes que pudessem ter os thalassianos seus próprios filhos e seguir adiante com a civilização humana. Foram duas gerações de naves semeadoras, a segunda passando a levar gente viva congelada, depois que o processo de criogenia se provou viável.

Entretanto, a colônias como a de Thalassa eram fruto de uma experiência social, com a História e Literatura da Terra severamente editadas, extirpando o conceito de religião, Deus e quetais: dos livros que conheço de Clarke, assim como sua opinião a respeito do assunto, este é o mais severo com religião - a despeito de uma generosidade talvez excessiva com o budismo, que também está presente aqui.

Havendo então uma colônia de seres criados ao mesmo tempo com as exatas mesmas condições de educação - e, intui-se, sociais/financeiras -, além de um vasto e pelo novo mundo, o sistema político que segue vem como um futuro desdobramento de uma república democrática, criando uma sociedade quase perfeita, jovial, com gosto pela vida, embora nem tão engajada em uma certa pressa com avanços tecnológicos. Quase como se fossem uma espécie de nobres selvagens do espaço, embora explicitamente tenham uma sociedade tecnológica. Mas são um povo amistoso e feliz com o que tem, e, como tal: sem pressa. Como resultado, um certo grau de pureza e ingenuidade emana dos thalassianos, Adões e Evas em seu Éden caribenho do espaço.

Thalassa - ou Scarif, se preferirem...

O contraste é com o recém-chegado: seres humanos completos, adultos, que viram o Sol explodir, após um último meio milênio conturbado, com sociedades em crise, levando consigo traumas e amarguras em geral dos últimos dias do sistema solar. Foram expostos a guerras, religião, levantes e decisões terríveis.

Infelizmente, o conflito, como em boa parte da obra de Clarke, não chega a realmente acontecer. Seu otimismo frequentemente vence o drama. A primeira metade do livro, mais ou menos, é para apresentar o cenário, a tecnologia e a situação, os personagens, os laços entre si, assim como as novas amizades e novos amores, e alguma rivalidade. Só para a segunda metade é que a promessa de conflito surge, mas mesmo assim, ela não desenvolve. Clarke simplesmente não consegue. Havendo ainda que desenvolver a descoberta de uma espécie própria thalassiana que, pelo jeito, demonstra sinais de inteligência.

E o que resta de um livro assim? O que parece restar sempre dos livros do Clarke: tudo. Todas as possibilidades. Todas as descrições acachapantes. Todas as ideias inovadoras e poderosas. Todas as promessas.

Só para ficar no que já foi descrito: é lícito uma sociedade tecnologicamente superior - os viajantes da Magalhães, no caso - interferir, ainda que da maneira mais gentil que encontrasse, em outra menos avançada? Sim? Não? Caso não, isso valeria a vida de um milhão de futuros colonos a bordo da nave, em uma expedição que ainda duraria 300 anos e 98% de chances de sucesso em um planeta descrito como similar a Marte, em vez de uma aposta garantida ali mesmo?

Obviamente que um livro bem maior seria necessário para explorar todas as implicações sugeridas aqui. A minha favorita é encontrar um subtexto que remete ao que chamo de "a geração de Moisés": no relato do Êxodo, nenhum dos escravos libertos do Egito viveu para entrar na Terra Prometida, devido ao pecado do Bezerro de Ouro - mas seus filhos não carregariam a mácula de seus pais, assim podendo entrar em Canaã.

Tal é o contraste entre thalassianos e viajantes. Os primeiros foram ideológica e biologicamente formados para ser uma Humanidade melhor. Os segundos são a promessa dos velhos maus hábitos retornando de um passado deixado para trás de todas as formas possíveis, e mesmo alguns dentre os viajantes têm ciência disso.

Em tempos de pré-ida a Marte, torna-se um questionamento atual: quem irá para outros corpos do sistema solar? E como pretendemos nos comportar lá fora?


As Canções da Terra Distante
336 p.
Editora Nova Fronteira