sábado, 27 de março de 2021

Justiça Ancilar

Capa da edição brasileira.

Aviso: Spoilers abaixo.

Ancillary Justice (2013) é o romance de estreia da autora Ann Leckie, que começou já ganhando os badalados prêmios Hugo e Nebula, além de outros: nada mal, mesmo, para uma iniciante. No Brasil, uma tradução foi publicada pela ed. Aleph em 2018.

Gênero

A história é uma space opera bem próxima à "FC Militar", passando-se dentro de alguns tantos milhares de anos, com a Humanidade espalhada pela galáxia e algumas raças alienígenas, porém mais focada em povos humanos que já cultivam suas próprias culturas e ancestralidades. Apesar do que, há a presença do indefectível império galáctico, contra o qual não há escapatória, um governo humano que "traz a civilização" às estrelas e povos conquistados.

A autora investe ainda em transhumanismo, apresentando conceitos e sequências muito boas, com pontos de vista - literais - de uma mesma Inteligência Artificial alternando-se através dos diversos corpos que comanda, de parágrafo em parágrafo, às vezes mesmo diálogos. A protagonista um dia foi uma nave, sendo ao mesmo tempo a gerenciadora de suas funções e coordenadora da força de ancilares - corpos humanos sem direito à identidade conservados criogenicamente e despertos para receberem implantes onde a vontade da IA se manifestará.

Há ainda a presença de pós-humanos, os que se modificaram tanto que comunicar-se com o resto da Humanidade se torna um desafio cognitivo. Mas infelizmente eles são apresentados de relance.

Cenário:

Humanos e não-humanos sofrem o domínio do Império Radchaai, uma nação humana que se expande e assimila povos há alguns milhares de anos, contra quem não há resistência possível, impondo padrões de sociedade e cultura, em um processo de dominação contínuo, sob a justificativa e crença que "traz a civilização" ao conquistado. 

As imperfeições da sociedade futurista se revelam no discurso classista entre a nobreza de bem-nascidos e que nascem 'líderes naturais' contra quem, por esforço próprio, galga posições, um conflito social diretamente relacionado com a trama. 

A galáxia de Leckie é rica, portanto, em pontos de vista e questões culturais sempre indicados, especialmente as imprecisões da tradução de dados termos e intenções em diferentes idiomas, constantes na narrativa.

Trama:

A trama se dá em dois momentos de História, separados por séculos, mas mantendo o ponto de vista narrativo - ou múltiplos pontos de vista - sempre de Breq, contado em primeira pessoa. Ambos os tempos são apresentados por serem o início e o final da história, havendo a autora preferido alternar os momentos, em vez de uma abordagem linear em duas partes, 'passado e presente', para todo o conteúdo. Essa alternância é bem interessante, especialmente no passado, quando pontos de vista físicos eram trocados a cada parágrafo, com os vários olhos e ouvidos controlados por Breq, quando era a IA de uma nave militar.

Personagens:

É uma história de vingança, onde os dois protagonistas assumem o papel de "parceiros improváveis": Breq, movido por uma vingança pessoal, encontra Seivarden, um viciado em droga, e acaba o ajudando sem nem saber ao certo por que. Com o passar do livro, a identidade de ambos vai se tornando clara ao leitor, assim como as motivações e histórias, especialmente a de Breq, pela qual as coisas andam. 

Confesso que achei Seivarden não tão desenvolvido quanto poderia, sendo mais um acessório para Breq, no final das contas: no mais, sua recuperação do vício de drogas, apesar da tecnologia existente, ainda era algo para se preocupar ao nível da confiança - o que, efetivamente, leva à cena da ponte. Mas, a partir daí, as coisas se encaminham funcionais demais, ao meu ver. 

Ancillary Trilogy.

Forma:

Tomando como base a inexistência de gêneros na linguagem do dominador Radchaai, a autora fez uma outra experiência estilística (além da de alternância de pontos de vista) e retirou qualquer referência a homens ou mulheres, quando as coisas eram descritas ou ditas do ponto de vista de quem falasse ou pensasse em radchaai, deixando gênero para alguns poucos momentos em outros idiomas. A tradução do livro para o português, sob autorização da autora, pôs como gênero default o feminino, para salientar, à sua maneira, uma tentativa de estranheza da obra. 

Pessoalmente, pra mim funcionou, e foi divertido imaginar um elenco all-female pela história e galáxia afora.

A alternância de períodos de época e entre pontos de vista de localização pode ser um pouco confuso, mas é o que eu chamo de um bom confuso. Dá a sensação de novidade, senão conceitual, ao menos estilística que cabe perfeitamente em uma obra de ficção científica.

Entretanto, se não tivesse chamado a atenção para a questão de gênero no idioma, eu sinto que tanto faria como tanto fizesse ser assim como seus personagens serem todos homens, como em um romance mais antigo: não há definições, redefinições dos papeis de gênero, ou qualquer debate aqui. Talvez eu esteja perdendo o ponto proposto, mas não acho que isso deixe o livro com uma "sacada genial" ou similar, como parecem insistir: um mundo que, se por um lado há a louvável equivalência entre ambos os sexos em qualquer função - e é o mínimo que se espera em sociedades humanas daqui para frente, ao ponto que em si não é a primeira obra a pensar isto -, não me parece que salientar a ausência de gênero no vocabulário confira algum valor extra à obra.

Comparemos, por exemplo, com A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin, onde tanto há a questão de gênero é algo influente tanto para a história quanto para as culturas apresentadas: aqui, parece mais uma curiosidade exótica, que sempre é lembrada, mas não parece realmente importar para mais nada.

O filminho na minha cabeça: Breq e Seivarden, com a licença das descrições.

Achei o texto, por vezes, um pouco arrastado, com o ritmo melhorando pela metade do livro: em suas inúmeras sutilezas, a autora não se furta em salientá-las, o que talvez comprometa uma fluidez melhor.  Pode ser que tenha ocorrido por ter sido o primeiro livro de uma série, vendo-se na obrigação de apresentar o máximo de informação possível a um leitor, com uma escrita mais ágil nos volumes posteriores. 

Mas não só de poréns e entretantos vive a história: na busca por vingança pessoal contra o imperador galáctico, a ex-nave de guerra que é a protagonista promove uma guerra de uma pessoa só, apenas para descobrir que o imperador também está em uma guerra de uma pessoa só - civil, no caso, que já dura séculos e produz suas vítimas: pois em seus múltiplos corpos, o imperador não concorda sempre consigo mesmo,  mergulhado em um dilema insolúvel provocado por uma potência alienígena ameaçadora maior do que o Radch...

... e isso é uma história que vale à pena ler. 

Sendo parte de uma trilogia, espero que a Aleph venha a publicá-la por inteiro.

Recomendo.

Justiça Ancilar

384 p.

Editora Aleph