domingo, 16 de julho de 2023

Simbiontes

Capa da edição impressa.

SPOILERS ABAIXO

Simbiontes, de Gerson Lodi-Ribeiro, é um romance de ficção científica militar, em um raro caso brasileiro deste subgênero, passado em seu universo ficcional da Aeternum Sidus Bellum, em que uma situação de primeiro contato leva a Humanidade a desenvolver uma cultura eminentemente guerreira. Os escritos acompanham as guerras travadas através dos séculos contra os Ry’whax, primeiro em um império estelar, depois reformados em uma república - nada dura para sempre com as civilizações descritas por Gerson, a não ser a própria guerra em si.

É o segundo texto que leio deste universo, o primeiro sendo a noveleta No Amor e na Guerra (situada 400 anos antes deste romance), publicada na antologia Space Opera: Aventuras fabulosas por universos extraordinários e republicada na coletânea Os Humanos Estão Chegando.  

Como de hábito, o worldbuilding do autor é caprichado, como visto em outros trabalhos. Neste livro, há dois apêndices, um com a cronologia através de alguns séculos da ASB e outro com a biologia da raça Ry’whax.

A história versa a respeito de um projeto secreto vital para a Humanidade e seus aliados, que devido à guerra começam a enfrentar escassez de matéria prima sendo executado na estrela Rigel, e o sacrifício necessário para tirar a atenção do inimigo de lá quando eles descobrem suas atividades. A batalha espacial encarniçada que se segue, desafiando todas as probabilidades, termina nas cercanias de um planeta em outro sistema estelar que, a princípio parece desabitado - enganosas aparências que levam à segunda parte da trama.

Capa do e-book.

Os personagens, especialmente os humanos e seus aliados, têm um ponto de vista mais centralizado na história e, por isso, são melhores desenvolvidos que os oponentes, presos em um comportamento de terríveis conquistadores espaciais que, pessoalmente, não tenho nada contra em uma trama assim. O desenvolvimento dos personagens é interessante, embora em algumas cenas e diálogos eu tenha achado um pouco deslocados, especialmente em meio a um frenesi de batalhas espaciais. Mas isso não impede em nada a fruição do livro. 

O título é interessante, pois oferece algumas leituras: os simbiontes citados tanto podem ser os implantes no cérebro dos Humanos e aliados, que se comportam como entidades inteligentes à parte com personalidade própria; da relação belicosa entre Humanidade e Ry’whax e mesmo uma ocorrendo no mundo em que ambos os oponentes irão parar.

Para os entusiastas de cenários de guerra espacial e, ainda, promessas de grandiloquência cósmica, é recomendado. Quero ver como se desenrola nos demais escritos. :)

Termino aqui com uma pequena lista fornecida pelo autor dos escritos, dentro da cronologia interna de ASB: 

1) Decisão em Capella

2) Simbiontes

3) Germes Mortais

(*) Os Humanos Estão Chegando: coletânea com várias narrativas, desde anteriores a Decisão em Capella a posteriores a Simbiontes.

Simbiontes (2022)
259 pp. (edição física)
autopub.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Filmografia das ExoMigrações

Disclaimer: SPOILERS a seguir.

A ideia de naves espaciais levando tripulantes inertes, sob alguma forma de animação suspensa, através de décadas ou séculos até um outro sistema estelar - devido à impossibilidade do voo mais veloz do que a luz - data pelo menos de Far Centaurus (1944), conto de A. E. Van Vogt, em que o autor aproveita e dá também a solução de "e no meio do caminho, enquanto dormiam, o voo FTL é descoberto e quando chegam ta-daaa já tá tudo habitado". O destino era a estrela mais próxima depois do Sol, o sistema triplo de Alfa Centauri (Alfa Centauri A, B e C - esta última é tbm conhecida por Proxima Centauri).

Há uma certa solenidade no conceito, pois envolve um respeito e temor pelas forças da Natureza, e da vastidão de um cosmos letal e indiferente, ao mesmo tempo em que coragem face a um provável sacrifício de suas próprias vidas são valorizados: o conceito do "martírio pela Ciência" data da virada para o século XX e nunca desapareceu por completo.

Uma variação do tema é a nave geracional, em que se não se preserva os tripulantes pois tal tecnologia é impossível ou ineficiente, mas supõe-se que eles vivam, tenham filhos e faleçam em tempo de voo, até que futuramente se chegue ao destino (um planeta habitável, via de regra). Teóricos da Astronáutica como Robert Goddard, J. D. Bernal e Konstantin Tsiolkovsky já propunham isso lá pelos 1920s.

Não é à toa que se denomina esse tipo de nave, em geral, como "arca": para a nossa cultura ocidental, a referência óbvia é a bíblica, em que na Arca de Noé a esperança de sobrevivência dos últimos humanos (e das espécies animais) persistiam após a destruição do mundo anterior. Outros povos ao redor do mundo apresentam histórias semelhantes em seus imaginários, como Deucalião e Pirra dos antigos gregos. 

Tem uma bela lista do Goodreads onde várias obras literárias do subgênero são apresentadas, incluindo-se aí Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke (1973), Aurora (1980), de Kim Stanley Robinson e Herdeiros do Tempo (2015), de Adrian Tchaikovsky.

Abaixo, alguns exemplos nas telas.

Originalmente, a missão a bordo da Júpiter II de Perdidos no Espaço (1965-1968) incluia sua tripulação em animação suspensa, até o ato de sabotagem do Dr. Smith. Ambas as séries, a original e a de 2018, têm Alfa Centauri como seu destino, embora o filme (1998) se refira a um planeta chamado Alpha Prime - seja onde lá isso for. Tal recurso não foi adotado mais, entre as viagens nos episódios para o planeta da semana.

A nave Júpiter 2 original.

Semente do Espaço (1x22) é um dos mais famosos episódios da Star Trek original, pois apresenta o vilão Khan Noonian Singh, que vinte anos depois volta em Jornada nas Estrelas II - A Ira de Khan (1982), assim sedimentando a ideia de continuidade em um show que prima em ser episódico, dado o formato de época. Após terem sido derrotados nas Guerras Eugênicas dos anos 1990s, Khan e os seus são julgados e exilados em uma nave sem capacidade FTL, sendo mantidos em animação suspensa - até serem encontrados pela tripulação da USS Enterprise.

A Enterprise e a Botany Bay: não uma, mas duas naus de insensatos...

O Mundo Infinito (3x08, 1968) é outro episódio da série clássica, em que os habitantes de Yonada, um asteroide oco, já se esqueceram até mesmo que estão em um lar provisório, com sua jornada havendo  começado com seus antepassados milênios antes.

A Enterprise e o asteroide-mundo Yonada.

A Estrela Perdida (1973) no Brasil, Starlost foi uma série de curta duração, com base em história de Harlan Ellison e com a atuação de Keir Dulea, o Dave Bowman de 2001 - Uma Odisseia no Espaço. Nela, a nave Ark, de (fontes divergem, mas são muitos quilômetros) de comprimento, carrega diversos ambientes estanques em uma longa viagem interestelar (fontes divergem, mas por muitos) séculos, mas está em curso de colisão com uma estrela. Cabe os personagens trafegar entre os diferentes ambientes (onde, via de regra, seus ocupantes também se esqueceram de suas origens), um por episódio, até o comando para tentar consertar a coisa. Após uma temporada, entretanto, a série foi cancelada sem que houvesse uma solução ao dilema central.

Earthship Ark: vagando incerta até hoje.

Wall-E (2008) conta a história em uma Terra arruinada ecologicamente pelo consumismo exacerbado, deixada sob os cuidados de robôs lixeiros enquanto ela volta a se tornar habitável, e que o que restou da Humanidade nasce, vive e morre a bordo dos Starliners da corporação BNL: aqui, a história se passa a bordo da Axiom, em que todo o dia é uma mistura de country club com shopping center, e seus moradores mantidos em ignorância e consumismo, conforme o desejo do verdadeiro comandante da nave, que não deseja voltar à Terra. Uma sociedade mantida estável, na ignorância e pelo consumo de bens materiais não é novidade na FC: adicione drogas e teremos, pelo menos, Admirável Mundo Novo (1932).

 

Axiom: a distopia simpática.

Pandorum (2009) apresenta a tragédia da Elysium, que parte com 60.000 almas para colonizar um mundo em uma viagem de 123 anos, pondo todos em hibernação. Mas quando alguns dos colonos despertam, descobrem haver toda uma nova situação a bordo, com mutantes canibais descendentes de quem devia estar dormindo tocando o terror. O filme foi muito mal na bilheteria, o que interrompeu suas pretensões de ser uma trilogia.

Elysium: mais para Hades.

Ascension (2014) envolve o Projeto Órion, uma estimativa do governo americano para lançar uma nave que pudesse alcançar até 10% da velocidade da luz, utilizando como propulsão sucessivas detonações nucleares à popa do veículo, protegido por um escudo resistente. O projeto foi proposto ainda nos anos 60 e, na vida real, engavetado: esta minissérie propõe que ele não somente foi construído como lançado secretamente, com a trama se desenrolando tanto lá quanto cá, em clima de conspiração. A bordo, ainda é uma espécie de sociedade americana dos anos 60, com moda e visual congelados no tempo, já na terceira geração - além de problemas, conspirações e estranhezas ocorrendo a bordo. 

Ascension: nem tudo é o que parece ser...

Passageiros (2016) investe no drama pessoal de um solitário colono que, por defeito de sua unidade de criogenia, desperta antes da chegada, o que ocorrerá apenas em 90 anos. Sem a possibilidade de entrar novamente em animação suspensa, ele percorre os amplos salões e corredores da Avalon e resolve despertar outra passageira, por quem passa a nutrir sentimentos, possivelmente a condenando a um destino semelhante ao dele.

Esquemas da Avalon.

Smile (10x02, 2017) é um episódio de Doctor Who onde a ação transcorre em uma colônia extrassolar (é dito ser Gliese 581d, off-screen) com uma nave de hibernação já havendo aterrissado, a Erewhon.

Se as Estrelas aparecessem (1x04, 2017) é um episódio da série The Orville, inspirada em Star Trek. Apesar do clima de paródia que permeia a série, ela consegue por diversas vezes ser extremamente fiel ao material original. Neste episódio, de forma semelhante a O Mundo Infinito, descrito acima, uma arca transporta seus habitantes há tanto tempo que eles já se esqueceram de suas origens: no caso, uma viagem para colonizar outro planeta se torna uma jornada de 2.000 anos, após uma tempestade iônica danificar o controle de voo, levando ao esquecimento e regresso da tecnologia e civilização.

A gigantesca bionave: perdidinha ali no meio, creiam, está a Orville.

The Ark (2023) é uma série que conta sobre uma malograda expedição a Próxima Centauri b, cujos futuros colonos são despertados de sua criogenia porque sua nave está caindo aos pedaços, e ninguém sabe direito o motivo. O elenco, como já é moda há algum tempo, constitui-se de desconhecidos entre si com diversas origens, capacidades - e motivações - que não exatamente gostam uns dos outros, mas precisam trabalhar juntos para sobreviverem a um desastre

Ark 1, onde problemas não faltam.

Das amostras acima, interessante ver alguns flertes com hard science-fiction, antes de sucumbirem às necessidades do drama, alguns erros conceituais e franco não-tô-nem-aí.

Nos onze casos acima, cinco adotaram destinos cientificamente embasados (seis, se contarmos o da Axiom). O sistema tríplice de Alfa Centauri foi lembrado quatro vezes: Perdidos no Espaço original e de 2108, Ascension e Ark 1. É normal que Alfa Centauri tenha uma boa presença em nosso imaginário: é o sistema estelar mais próximo do nosso, distando a 4,3 anos-luz: uma lonjura desgraçada que, ao mesmo tempo, é um "logo ali" em distâncias astronômicas. Com a confirmação de planetas ao redor de Proxima Centauri (Alfa Centauri A e B, mais semelhantes ao nosso Sol, não estão apresentando evidência até agora), é normal que a ficção científica renove o interesse ultimamente - especialmente com Proxima Centauri b, orbitando na distância certa de sua estrela para ter água em estado líquido em sua superfície, se lá houver. Já Gliese 581d, no episódio de Doctor Who, orbita uma estrela a 20,4 anos-luz de nós, com sua posição aparente próxima à de Beta de Libra.

Passageiros cita um mundo-alvo apenas chamado Homestead II, em uma viagem que durará 120 anos, e o filme de Perdidos no Espaço menciona o tal Alpha Prime. O destino foi esquecido ou não era importante nos demais casos. 

As viagens retratadas levando aproximadamente 5 a 6 anos (Ark 1, na 1a. temporada), 50 anos (Ascension), 120 anos (Avalon), 123 anos (Elysium) 270 anos (Botany Bay), 405 anos (Earthship Ark), 750 anos (Axiom), 2.000 anos (bionave), 10.000 anos (Yonada) e três temporadas (Júpiter II).

Alguns dos motivos para os êxodos são semelhantes: a falência do ecossistema lança a flotilha com Earthship Ark, Júpiter II (1998), Axiom, Elysium e Ark 1; a superpopulação global lança o Júpiter II original, enquanto um evento de impacto na Terra motiva a partida dos expedicionários no Perdidos do Espaço de 2018; pelo ensejo por colonização em outro sistema estelar decola a bionave em The Orville; a explosão da estrela natal em nova lança o asteroide Yonadu, e uma sentença penal encarrega a Botany Bay de levar Khan e seus asseclas para sabe-se lá para onde.

Dos veículos retratados, além da barreira da velocidade da luz (mesmo se o universo ficcional permitir), algo que que se pretende que dê peso (piscadinha, piscadinha) ao cenário é a gravidade induzida por setores rotatórios, como em The Ark e Passageiros. Ascension parte (mais ou menos) do princípio de que a nave tem alguma aceleração para explicar sua gravidade a bordo. Semelhantemente, nas séries Babylon 5 e The Expanse temos uma aplicação mais cuidadosa disto, assim como as necessidades da inércia sempre que possível: o problema primeiro é que, via de regra, gente flutuando significa encarecer a produção. Em segundo, levar em conta a inércia significa ações calmas e leeentas - assim como em 2001 e alguns filmes inspirados por ele ao longo dos anos 70 -, o que pra fins de drama não interessa a (quase) ninguém. Acaba sendo um equilíbrio nem sempre fácil de se obter entre ambas as necessidades, ao se fazer esse tipo de história.

Proxima b: from 'eyeball planet' to full Alderaan...

No final, o que sobra é a solenidade mencionada, e que na curta experiência humana, podemos relacionar somente com o período das Grandes Navegações que, independente de seus motivos e consequências, inspira até hoje se imaginamos a ousadia e engenhosidade do enfrentamento do mar aberto, ambiente eminentemente hostil, por quem somente dispunha de navios à vela e nenhuma possibilidade de navegação eletrônica, muito menos de comunicação com terra. Quando a ficção científica se estabelece, ao pensar no futuro da exploração espacial, inevitavelmente vai atrás das referências históricas e, como tal, traça paralelos com os 1400s-1600s.

Como será que faremos isso, na real? Só estando lá para saber. Tecnologia, ciência e sociedade às vezes dão saltos ou tomam caminhos inesperados de qualquer projeção que façamos: e ficção científica inevitavelmente reflete o agora.

Mas eu gostaria de estar lá para ver.