Gareth Edwards e todos os nossos finais felizes mediante o apocalipse.
SPOILERS ABAIXO
Podemos pensar em uma escola de direção de hardware militar, da qual os decanos do curso certamente seriam James Cameron e Michael Bay. Mas, provavelmente beneficiado pela liberdade do roteiro de "apenas" 80 milhões de dólares, o mesmo Gareth Edwards que dirigiu Rogue One consegue em Resistência contar uma história talvez mais ao seu gosto, do que sofrendo interferências como no outro caso, e manter o 'military porn' em níveis satisfatórios - embora me pareça que não sejam poucas as correlações entre ambos os filmes.
Temas e estéticas do filme podem ser encontrados em uma genealogia que inclui "criancinhas mágicas" hi-tech que inclui I.A. (Spielberg) e Metrópolis (Otomo); o reconhecimento de direitos de robôs/inteligências artificiais como base para levante social e motivo pra guerra no pano de fundo do universo de The Matrix, assim como os replicantes de Blade Runner (uma das referências declaradas do autor).
No aspecto do aprimoramento da robótica, o filme também meio que é uma História Alternativa, com o avanço da pesquisa de inteligência artificial já deixando robôs participarem das tripulações do ônibus espacial nos 1980, conforme a "recapitulação histórica" do início. as inteligências artificiais são um fato comum na vida do planeta. Há robôs e simulantes, que são robôs de aspecto externo bastante humanos (a FC costuma chamá-los de andróides), inclusive com "aparências doadas" por seres humanos, em todos os setores da sociedade.
No meio do caminho, entretanto, uma bomba atômica atinge Los Angeles matando um milhão de pessoas, e a responsabilidade recai sobre as IAs (isso é esclarecido depois como um acidente, mas para nenhum efeito prático) que deveriam defender o país. Isso deixa os EUA, em nome do 'ocidente' (lá pelas tantas deixam de usar 'ocidente'), uma vez eleito um novo inimigo, um país vilanesco e agressivo.
Enquanto isso, no oriente, nas nações da tal "Nova Ásia", as IAs eram rotineiramente mantidas em segurança e integradas à sociedade, sofrendo com os ataques contínuos americanos. A capacidade tecnológica deixa os robôs auto-conscientes e, no processo, capazes de tanto afeto quanto o ser humano. Há robôs que ocupam o cargo de sacerdotes e monges, como é demonstrado, havendo encontrado inclusive significado na espiritualidade: é isso ou "é tudo programação", como se insiste que seja pelos olhos dos ocidentais?
O filme, portanto, tem diversos componentes do leste asiático, entre cenário e elenco, enriquecendo a disposição futurista da trama, ao se passar em 2070 e não se limitando a um cenário totalmente americano, idealizado no progresso ou na derrota. Há um quê de "paraíso tropical conspurcado por ações militares" que também está em Rogue One, o que me faz perguntar se não é uma preferência também do diretor - embora, claro, não seja o único a abordar esse tipo de contraste.
A retratação dos "povos asiáticos" sem definição, mas assim mostrados, é a tolerância e complacência (mesmo quando pegando em armas e lutando para sobreviver) com as quais, afinal, atraíram a ira americana ao receberem sem reservas os robôs em seu meio. Na insistência de um EUA vilanesco e agressivo, talvez se compense o que talvez seja uma forma elogiosa de orientalismo? Cartas para a redação.
A história em si passa pela terceira variação que assisti esse ano, após O Mandaloriano e The Last of Us, do cara truculento que tem que proteger uma criança desconhecida durante um trajeto e vai amolecendo no processo por causa do elo que, a contragosto, desenvolve com a criança. Ao menos, dessa vez, não foi com Pedro Pascal. :) Igualmente, foi a terceira criancinha mágica do ano (ela é a escolhida/tem em sua biologia um segredo/é híbrida de partes improváveis e/ou opostas/etc).
A trama é mais complexa do que isso, com um soldado ocidental infiltrado entre guerrilheiros orientais para encontrar um grande projetista de IAs para assassiná-lo mas que se afeiçoa àquela gente e uma mulher em especial, então "going native" (Avatar, Pocahontas). Após um ataque onde está e sua gente ser obliterada, é retirado da aposentadoria, convencendo-o a retomar a missão quando vendem a ideia de que sua favorita - morta quando estava grávida do filho deles - ainda estaria viva. Encontre-a, e encontraremos o tal arquiteto misterioso.
O trecho final - onde para se resolver as coisas depende-se da decolagem de um voo clandestino - é meio corrido, o que é curioso, pois são mais do que duas horas de filme. Mas é o problema quando, ao lado da ação desenfreada, ainda se procura tempo para desenvolvimento de personagens e suas tramas mais pessoais, sentimentais - e inevitavelmente mais lentas.
O elenco está muito bom, com John David Washington (filho de Denzel, aliás), fazendo com Gemma Chan (desde 2015 às voltas com direitos de robôs) muito bem um casal trágico, e, em ótima estreia, a criancinha mágica de Madeleine Yuna Voyles.