quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Lebre da Madrugada e Príncipe Partido

Livro 1

AVISO: SPOILERS A SEGUIR

Lebre da Madrugada e Príncipe Partido formam a duologia Senhores de Sombra e Prata, romances de estreia de Arthur Malvavisco, autor sul-mato-grossense, publicados pela editora Corvus. Participei do financiamento coletivo, o que me deu acesso aos livros físicos. O formato digital também está disponível no site da editora (que, se entendi, deve lançar uma versão física regularmente).

A obra é de fantasia, com elementos medievais europeus no cenário, enfatizado pela sonoridade de nomes próprios e de lugares. Temos, no início de ambos os livros, um "Mapa da Região Norte de Solária", onde se passa a trama de interesse, embora não haja maiores conexões com o que existe ainda por aí, ou uma sensação de escala - como convém, ao meu ver, em tempos de dúbia cartografia. O mundo é rico, que ente o trabalho de pesquisa do autor e de pesquisador do autor, da área de biologia, trabalhando com répteis, resgate florestal e educação ambiental. Seu repertório é bem utilizado na construção e em causas-e-consequências do mundo e de ações, sempre bem descritas e em uma prosa fluída. Adiciona-se à trama elementos de identidade e sexualidade, que também fazem parte do universo pessoal do autor.

A trama se passa na Solária do mapa, onde seres humanos reconhecíveis como tal vivem, e que sofrem a cada dez anos com o Eclipse, um evento onde um outro mundo/plano chamado Ilúria colidem. O evento, a cada dez anos, é traumáticos, pois tanto o Umbral (a grande força mística que rege o entre-mundos) insiste em sangrar para outros planos com consequências nefastas; quanto os ilurianos (uma raça humanoide agressiva, de cultura belicista) aproveita para invadir Solária, cujas pessoas não são tão fortes assim. A saída em Solária foi montar uma igreja baseada em uma figura messiânica, e correr atrás de indivíduos capazes de canalizar as forças do Umbral e pô-los sob domínio orientação desta Igreja.

A partir disto, temos descrições que nos deixam à vontade nos diferentes ambientes de Solária, sobrando Ilúria em retrospecto nas lembranças de Aeselir. Especialmente em Lebre, em que muito de uma road trip acaba acontecendo, com o casal protagonista em fuga, após um início urbano e arredores. Apesar de Ilúria (e todos os seus dramas próprios) sempre ter um aspecto mais sombrio, mesmo isto é presente em Solária e suas paisagens, mesmo as mais agrestes: pontos extras pela abandonada Val Loire, vítima de um Eclipse em tempos anteriores.

Dois livros foram necessários para contar a história que Malvavisco queria contar, de 312 e 448 páginas respectivamente, sendo bem slow burn. Nelas, temos as histórias que se entrelaçam de Andras e Aeselir Hrád, que seguem a lógica enemies to lovers: mas reduzi-la a isso é subestimar toda essa construção. E prefiro não me alongar, porque julgo que essa resenha de Lebre da Madrugada, na Amazon em 17 de fevereiro último, já comentou de forma brilhante essa relação, e da mesma forma outros aspectos do primeiro livro.

Livro 2

Em Príncipe Partido temos o desenvolvimento das situações apresentadas em Lebre e às conclusões possíveis, da bagagem emocional dos personagens - especialmente Aeselir, que o segundo livro o torna protagonista de toda a história, em um sentido mais amplo - ao que fazer quanto ao apocalipse iminente.

A complexidade da trama e dos personagens em transformação aqui se mantém, e realmente leva o excedente de páginas para desenvolvê-las como bem merece. Entendendo que é o primeiro texto longo publicado do autor, o resultado me deu a impressão de um tour de force que talvez tenha sido um desafio para o escritor, especialmente se iniciante: tanto quanto d/escrever as informações necessárias (cenário ou do que for), há que se saber quando não. A duologia é rica em todos os traços a que se propõe, mas nem sempre me pareceu - notem, me pareceu - algo totalmente às claras; mas assim considero que possa, ou mesmo deva, ser a literatura: há um tanto para se deixar claro, e há outro tanto para se deixar a cargo dos próprios leitores. 

E, no caso dos Senhores de Sombra e Prata, ou de mundos que vivem à sombra um do outro, nada mais adequado.

Na loja da editora pode-se baixar gratuitamente o conto A Corrida dos Lobos, do autor, passando-se no mesmo universo.

Em suma: recomendo. Foi muito bom encerrar o ano com uma leitura assim, e esta como minha última resenha. É seguir o autor daqui por diante, e esperar o que ele ainda trará aos seus leitores.


Lebre da Madrugada
312 p
Príncipe Partido
448 p.
Corvus

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Argos 2023

 

Anno Draconnico, com vitória dupla de Ana Merege: é 2017 de novo!

Semana passada, quarta dia 13, tivemos a entrega do Argos 2023. Na figura acima, os ganhadores nas categorias Romance, Antologia/Coletânea e Conto. Cirilo S. Lemos levou o primeiro, e Ana Lúcia Merege os outros dois.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Entrevista com o Vampiro (2022)

Para assistir sem medo!

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Adaptações sempre são uma aposta. Algumas dão certo, outras é melhor nem lembrar. Havendo começado com o óbvio, Entrevista com o Vampiro foi a melhor série em se tratando de natureza fantástica que assisti esse ano - e isso contando com Silo (resenha aqui), Extrapolations e For All Mankind.

Dá a impressão que tudo aquilo que deu errado com Anéis de Poder se acertou aqui: e houve mudanças arriscadas, as mais óbvias sendo tanto a mudança étnica de Louis quanto atualizar a série, tanto no passado - que agora começa em 1910 - e com a segunda entrevista, que é hoje em dia: a entrevista original de Daniel com Louis está no passado de ambos os personagens, ocorrida no final dos anos 70 e que acabou de maneira, huh, conflituosa: em uma cobertura da moderna Dubai, Daniel comparece a  um convite de Louis, para retomarem a conversa interrompida décadas antes, e assim esclarecem diversos pontos que a entrevista original omitiu, transferindo a ação para a Nova Orleans de 1910 a 1930.

A vantagem de se ter uma adaptação para a televisão, em vez de um filme, é que não temos que correr com o prazo apertado de cerca de duas horas somente do filme: esparramados em diversos episódios de 40 ou 50 minutos, há tempo para as minúcias acontecerem e, se cultivadas de modo certo, reforçam aspectos centrais da trama, personagens e o mundo: a relação do triângulo Lestat-Louis-Claudia é demonstrada e desenvolvida em toda sua doença. Da mesma maneira, as décadas se passando mostram a mudança de costumes, porém a permanência das questões raciais.

A perfeita família disfuncional.

O elenco está simplesmente incrível: o casa de protagonistas exibe, como tanto foi notado, uma química excelente. Nesse aspecto, é uma adaptação bem fiel: no fim das contas, temos a visão do que aconteceu de Louis, e Lestat é - inevitável porém inegavelmente - mantido como o monstro misterioso, criador e destruidor, incapaz de remorso e agindo sempre sob interesses próprios. O Lestat de Sam Reid entrega exatamente isso, o tom de ameaça sempre a cada instante que surge, o lado brincalhão que sempre sublinhou a crueldade acrescentam personalidade junto do amor que sente por Louis - na versão, claro, de Lestat do que seja o assunto. Mas mesmo o boneco insensível que dá a impressão ser Lestat consegue-se aqui gerar um mínimo de empatia, ao citar sua origem e seu relacionamento com o vampiro que lhe criou: e que, mesmo apesar daquele terror, a ideia de abandono o aterroriza, o que ele acaba levando adiante.

A faixa do amanhecer, a fresta do caixão que abre, a mordida vampiresca: abertura sensacional de várias leituras.

Jacob Anderson, (conhecido do fandom como o Grey Worm de Game of Thrones) no papel do 'vampiro humanizado', vítima de seu criador, tem muito mais tempo para desenvolver Louis, ainda levando em conta suas origens mortais como um homem preto da Nova Orleans de 1910. com uma família que consegue enriquecer e ter uma boa posição social - tudo considerado... - mas que com que desenvolve uma relação cada vez mais conflituosa (não bastasse desaprovarem sua linha de trabalho), especialmente após o envolvimento com Lestat: a perda dos vínculos de afeto e sociais, que nos ajudam com nossa própria humanidade, são muito bem desenrolados aqui.

Bailey Bass, com apenas nove créditos como atriz segundo o IMDB, dá toda uma nova dimensão para Claudia, essa é uma atriz para prestarmos atenção quando seu nome aparecer. A personagem aqui mudou, inclusive, de idade - de novo: a Claudia original dos romances era ainda mais jovem do que a Claudia de Kirsten Dunst -, e a percepção de ser uma recém-adolescente eternamente pode ter uma realidade material ainda maior do que a percepção de ser uma criança eternamente, levando uma dose de drama. E é ela que será a grande fonte de oposição a Lestat, primeiro com seus desvarios encantada com sua nova condição, depois em frio cálculo e planejamento: novamente, tudo isso com a vantagem de se ter diversos episódios, em vez de somente duas horas de filme.

Psycho-cutie-cutie dos papais.

Agora, é Eric Bogosian com seu Daniel  Molloy velho, doente, sobrevivente do encontro original, um jornalista que acumula décadas de cinismo e acidez, e que não sabe quando parar - e não é de hoje - que contestamos quem é o protagonista aqui. As perguntas de Daniel, assim como suas colocações, não raro deixando que o trauma e o ressentimento de quarenta anos antes as guie, ajuda a guiar as memórias e a história que Louis conta - mesmo para o desgosto do próprio, por vezes. 

No fim das contas, Entrevista com o Vampiro é uma linda passagem de tocha, entre gerações, das adaptações de uma mesma obra importante para o terror, e que a própria autora elogiava: me deu a impressão que, algumas coisas, talvez ela tivesse querido ter escrito pessoalmente, lá atrás...

Esta série faz parte do mesmo universo onde se passa As Bruxas Mayfair de Anne Rice, de outra série de livro da autora. A ideia é uma mesma cronologia... espero que dê certo. Ambas as séries estão ainda apenas com sua primeira temporada.

Que venha a segunda!