AVISO: SPOILERS A SEGUIR
Lebre da Madrugada e Príncipe Partido formam a duologia Senhores de Sombra e Prata, romances de estreia de Arthur Malvavisco, autor sul-mato-grossense, publicados pela editora Corvus. Participei do financiamento coletivo, o que me deu acesso aos livros físicos. O formato digital também está disponível no site da editora (que, se entendi, deve lançar uma versão física regularmente).
A obra é de fantasia, com elementos medievais europeus no cenário, enfatizado pela sonoridade de nomes próprios e de lugares. Temos, no início de ambos os livros, um "Mapa da Região Norte de Solária", onde se passa a trama de interesse, embora não haja maiores conexões com o que existe ainda por aí, ou uma sensação de escala - como convém, ao meu ver, em tempos de dúbia cartografia. O mundo é rico, que ente o trabalho de pesquisa do autor e de pesquisador do autor, da área de biologia, trabalhando com répteis, resgate florestal e educação ambiental. Seu repertório é bem utilizado na construção e em causas-e-consequências do mundo e de ações, sempre bem descritas e em uma prosa fluída. Adiciona-se à trama elementos de identidade e sexualidade, que também fazem parte do universo pessoal do autor.
A trama se passa na Solária do mapa, onde seres humanos reconhecíveis como tal vivem, e que sofrem a cada dez anos com o Eclipse, um evento onde um outro mundo/plano chamado Ilúria colidem. O evento, a cada dez anos, é traumáticos, pois tanto o Umbral (a grande força mística que rege o entre-mundos) insiste em sangrar para outros planos com consequências nefastas; quanto os ilurianos (uma raça humanoide agressiva, de cultura belicista) aproveita para invadir Solária, cujas pessoas não são tão fortes assim. A saída em Solária foi montar uma igreja baseada em uma figura messiânica, e correr atrás de indivíduos capazes de canalizar as forças do Umbral e pô-los sob domínio orientação desta Igreja.
A partir disto, temos descrições que nos deixam à vontade nos diferentes ambientes de Solária, sobrando Ilúria em retrospecto nas lembranças de Aeselir. Especialmente em Lebre, em que muito de uma road trip acaba acontecendo, com o casal protagonista em fuga, após um início urbano e arredores. Apesar de Ilúria (e todos os seus dramas próprios) sempre ter um aspecto mais sombrio, mesmo isto é presente em Solária e suas paisagens, mesmo as mais agrestes: pontos extras pela abandonada Val Loire, vítima de um Eclipse em tempos anteriores.
Dois livros foram necessários para contar a história que Malvavisco queria contar, de 312 e 448 páginas respectivamente, sendo bem slow burn. Nelas, temos as histórias que se entrelaçam de Andras e Aeselir Hrád, que seguem a lógica enemies to lovers: mas reduzi-la a isso é subestimar toda essa construção. E prefiro não me alongar, porque julgo que essa resenha de Lebre da Madrugada, na Amazon em 17 de fevereiro último, já comentou de forma brilhante essa relação, e da mesma forma outros aspectos do primeiro livro.
Em Príncipe Partido temos o desenvolvimento das situações apresentadas em Lebre e às conclusões possíveis, da bagagem emocional dos personagens - especialmente Aeselir, que o segundo livro o torna protagonista de toda a história, em um sentido mais amplo - ao que fazer quanto ao apocalipse iminente.
A complexidade da trama e dos personagens em transformação aqui se mantém, e realmente leva o excedente de páginas para desenvolvê-las como bem merece. Entendendo que é o primeiro texto longo publicado do autor, o resultado me deu a impressão de um tour de force que talvez tenha sido um desafio para o escritor, especialmente se iniciante: tanto quanto d/escrever as informações necessárias (cenário ou do que for), há que se saber quando não. A duologia é rica em todos os traços a que se propõe, mas nem sempre me pareceu - notem, me pareceu - algo totalmente às claras; mas assim considero que possa, ou mesmo deva, ser a literatura: há um tanto para se deixar claro, e há outro tanto para se deixar a cargo dos próprios leitores.
E, no caso dos Senhores de Sombra e Prata, ou de mundos que vivem à sombra um do outro, nada mais adequado.
Na loja da editora pode-se baixar gratuitamente o conto A Corrida dos Lobos, do autor, passando-se no mesmo universo.
Em suma: recomendo. Foi muito bom encerrar o ano com uma leitura assim, e esta como minha última resenha. É seguir o autor daqui por diante, e esperar o que ele ainda trará aos seus leitores.