Deliciosamente PKDickiano.
AVISO: SPOILERS A SEGUIR
A Curva do Sonho (The Lathe of Heaven, 1971), de Ursula K. Le Guin, foi premiado com o Locus (1972) e indicado ao Hugo ('72) e Nebula ('71).
No distante ano de 2004, em um mundo de escassez de recursos dado a superpopulação; George Orr é acometido de sonhos capazes de transformar a realidade. Temendo sempre o próximo sonho e uma mudança para (ainda) pior, ele infringe a lei tomando mais remédios do que uma prescrição legal permite, e, após uma overdose, vai parar em tratamento de sonhos. Lá conhece o Dr. William Haber, especialista no assunto, com uma tecnologia adaptada para influenciar sonhos negativos. A princípio Haber inevitavelmente duvida do que Orr alega sofrer, mas após lhe induzir e monitorar um sonho, ele próprio testemunha a mudança na paisagem ao redor, tendo em mente agora duas versões conflitantes do mundo-como-ele-sempre-foi.
Não demora para Haber entender que a chance para um mundo melhor - e uma certa dose de benefício próprio - está à mão, e ele passa a usar as sessões de tratamento que Orr legalmente deve cumprir para alterar a realidade, conforme crê o que virá a ser para o bem geral. Mas para cada nova melhoria, um desastre adicional: a superpopulação "historicamente" é combatida com uma praga que matou bilhões; o fim das doenças gerou uma mentalidade eugência; o fim da guerra entre os povos se dá com uma invasão espacial; e o fim do racismo significa o fim das identidades étnicas. Mas, na cabeça de Haber, a próxima mudança sempre será melhor - assim como maior será sua própria importância para o mundo.
Filosofias entram em contraste na narrativa, especialmente visões de mundo taoísta versus positivista: o render-se às infinitas possibilidades do mundo versus a ânsia míope em melhorá-lo, não indo além de um controle extremamente limitado de uma situação. O artigo na wiki ainda menciona crítica a psicologia behaviorista quanto o utilitarianismo.
Capa da edição original.
As descrições de cenário primam pelo estabelecimento em poucas páginas, entre um sonho e o próximo. Mas tudo gira ao redor da cidade de Portland, no Oregon (EUA), indo desde uma versão com superpopulação, poluição e miséria até algo com poucas centenas de milhares de habitantes, com ecossistema recuperado, e dotada agora de uma importância global. Alguns marcos na paisagem são citados como referência, entre estilos arquitetônicos e necessidades urbanística que permanecem, mudam ou somem - mesmo o onipresente Monte Hood, vulcão a uma certa distância de Portland, pode ser avistado ou não, entrar em atividade ou continuar adormecido, de acordo com o momento. Nessas poucas páginas, Le Guin dá a vivacidade necessária para se entender o alcance do poder, o novo estilo presente e a miopia que se segue dos proponentes de cada novo mundo.
James Caan: boa escolha para o dr. Haber (adaptação de 2002).
O contraste entre os antagonistas é um dos pontos altos da trama. George Orr e Willam Haber são marcantemente opostos. Haber é um tipo grande e espaçoso, e além de extrovertido, é cheio de assertividades. Orr é tímido, com a personalidade 'certa' para se ter um poder tão terrível como aquele, pois, antes de mais nada, não quer tê-lo. Orr é dito ter a personalidade mais mediana já encontrada, pouco dado a arroubos ou frieza: entretanto, é forte para não se entregar à tentação de construir um mundo melhor, tão ambicionada por Haber. Le Guin explora bem as diferenças entre ambos, a cada cena que interagem, dando um domínio total do médico sobre seu paciente - que, no entanto, resiste como pode.
A terceira personagem de destaque é Heather Lelache, que me pareceu um pouco deslocada. Ela também é testemunha da mudança dos sonhos de Orr, e a princípio havia entrado na trama para - impressão minha, ao menos - ajudar Orr a se opor contra Haber, uma vez que ele sempre é descrito muito como passivo e ela, dotada de uma agressividade nata. Mas seu papel fica como interesse romântico de Orr, sem apitar maiores coisas no final das contas. Mesmo em dado momento, quando ela passa a nunca existir, Orr se mantém estável e controlado, como sempre se indicou como ele é: entretanto, isso não exatamente ajuda a importância de Lelache para a trama... ao menos, ao meu ver.
A história ganhou 2 adaptações para TV (1980 e 2002) e uma para o teatro.
Esse é um livro que lembra muito as histórias típicas de Philip K. Dick, e isto é proposital, sendo na verdade um tributo à uma velha amizade.
Permitindo-me um pouco de especulação da minha parte... me parece que a crítica ao positivismo afeta uma visão tradicional vista na FC, quando alude ao progresso tecnológico em si a chance de redenção da sociedade: por tabela, uma crítica à própria FC, então tradicionalmente falando. Seria interessante saber se essa crítica encontrou eco ou mesmo fez vestir algumas carapuças...
The Late of Heaven foi já traduzido para o português (nos dois lados do Atlântico) algumas vezes, e Do Outro Lado do Sonhos gerou esta resenha por Marcello S. Branco.
Parabéns à Morro Branco por mais essa.
A Curva do Sonho
224 p
Morro Branco