quarta-feira, 5 de junho de 2024

Paradoxo de Theséus

 

Paradoxo de Theséus (2022)

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Um romance curto, Paradoxo de Theséus recheia bem suas 129 páginas com ideias e considerações sobre sobre a autenticidade de uma pessoa, levando em conta ética e filosofia, às vésperas de um grande salto tecnológico que irá dar à Humanidade a vida eterna - ou a possibilidade de sua extinção.

Passado no ano 2071, é uma ficção científica near future, que pode nos lembrar de séries recentes como Years and Years e Extrapolations - Futuro Inquietante, Mesmo se deixarmos a tecnologia mais avançada  - e (ainda/por enquanto) mais fantasiosa - do romance de lado, sobra uma bela apresentação sobre como a percepção/ponto de vista é influenciado pela intermediação digital, quando se torna comum o uso de lentes de contato que captam sinais que todos passam a emitir como cartões de visita sempre online, informando nomes, pronomes e diversos dados biográficos - levando alguns à necessidade de hackear o sistema e, com isso, tornar-se invisível. Segue o trecho da página 35:

A informação metavérsica sempre haveria de sobrepujar o mundo dos fatos. Se as lentes dissessem que uma árvore é uma pedra, levaria alguns segundos até que a mente fosse capaz de contestar a informação errada. Por isso, o truque de Barbara funcionava tão bem. Com a maquiagem capaz de obstruir o reconhecimento facial, ela era ninguém para o metaverso e, sendo ninguém, poderia transitar quase invisível.

Em uma sociedade onde tudo era tão exposto e a cognição média - e inteligência nada tendo a ver com isso - tão afetada e dependente de tal intermediação, as possibilidades de cancelamento e perseguição são amplas, como as que sofre o protagonista.

Deixando claro, isto ocorre principalmente onde a maior parte da trama se desenrola, Utreque, na Holanda: a "evasão de privacidade" é dita não ser tão cultural assim quanto na Turquia como é na Europa, quando temos uma cena em Istambul.

Importante notar que, todo esse modo de viver e de ver é detalhado ao longo das 120 páginas do romance, sendo a informação bem distribuída e relevante a cada ponto. 

Podemos ter Paradoxo de Theséus como também uma história sobre ficção científica transhumanista, o que lembra outro romance da mesma coleção Dragão Mecânico, Silêncios Infinitos de Nikelen Witter (resenhado aqui), indicando a atenção de algumas de nossas autorias nesses temas.

A desconhecida série Century City: casos legais sobre direitos de clones e afins.

A trama gira ao redor do acionamento do Basilisco, uma máquina constituída de "um trilhão e setecentos e vinte bilhões de robôs de 0,05 micrômetros de diâmetro", capazes de captar e copiar as memórias, personalidades e quaisquer outras informações de um indivíduo, levando-as, teoricamente, para a posteridade digital. Mas, já se contando 23 personalidades copiadas, entre as intelectual, ética e artisticamente mais relevantes para o planeta, fica a pergunta: por que o Basilisco não se manifesta?

Este acionamento é seguido de opiniões fortes e divididas, permeando a sociedade, especialmente sobre quem se opõe: tanto o Humanismo Radical quanto a Frente de Libertação Animal rejeitam o experimento. O HR, por rígidas questões da identidade em se ser Humano, enquanto a FLA, devido a um experimento da tecnologia do Basilisco em animais, com fins horrendos.

No momento do livro, o das 23 personalidades já copiadas, de pessoas notáveis e - esta agora, condição indiscutível para o armazenamento - às portas da morte, os ânimos se acirram no campo do debate e da miltância, com ações cada vez mais agressivas ocorrendo: em breve, "cultura do cancelamento" não será o suficiente. 

Missão Garatéa - gentis menções assim como a fé na ciência made in BR, como de praxe na obra do autor.

Os personagens se colocam, diante de tudo isso, dentro do papel que lhes cabe: o criador do projeto, seu irmão, sua aliada, sua antagonista e seu assistente. Há uma rede entre eles, especialmente os 3 primeiros, de amparo por afeto genuíno. A antagonista, ligada a uma das facções radicais, opera dentro de uma hipocrisia, usando os meios de seu grupo para satisfazer motivações pessoais contra o projeto do Basilisco. É uma personagem fácil de se antipatizar (mesmo ao se compreender suas motivações), embora o protagonista seja também difícil de simpatizar: não só pela natureza de seu projeto e mas por seu compromisso com o mesmo é que o levam não só para um demorado passeio pelo quintal do Cientista Louco, mas a ameaças extremas para remover qualquer oposição - o que lhe salva, o que lhe puxa para o pé-no-chão e apela ao seu lado humano são o carinho e preocupação por seu irmão, portador de Síndrome de Angelman, que mesmo a ciência da metade do século XXI apenas pode aliviar muito pouco. Obstinação do tipo, "até as últimas consequências, aproximam protagonista e antagonista. O quinto personagem, o assistente do protagonista, é peça fundamental para a trama, com suas próprias motivações.

Cabe dizer que protagonista e aliada também têm transtornos, dentro do espectro autista, com suas peculiaridades. Ela ainda sofre de agorafobia, combatível sob pesados medicamentos - mas também ama o irmão do protagonista, genuinamente se preocupando com ele. Sendo assim, construídos sobre seus erros, os personagens navegam pela história, dando o que creem ser o melhor de si.

O que me leva ainda pensar: antes de algum desejo por representatividade por parte do autor; ao desenvolver assim seus personagens, consideremos a noção da Humanidade, no amplo sentido biológico, histórico e geográfico da coisa. Ao falarmos assim da espécie humana, temos uma ideia geral e difusa sobre pessoas que, a princípio, parecem ditas normais: mas, como cantava Gal ou Caetano (e antes, talvez comentasse Picasso), de perto ninguém é normal. Neurodivergente é o novo normal? Talvez. Mas para salvar - ou condenar - de vez essa Vaca Profana, é o que tem pra hoje.

Saros 136: autor multimídia, e alguns temas comuns a ambas as obras.

A expectativa do "Despertar da Máquina" lembra filmes como Colossus (1970), A Geração Proteus (1977) ou os contos Disque F Para Frankenstein, de Arthur C. Clarke, e o micro-conto de Frederic Brown, Resposta: o 'complexo de Frankenstein', que Asimov nos advertia contra - Homem cria Robô, Robô mata Homem. Claro que a midiografia aqui vai longe (de cabeça, franquias e filmes como O Exterminador do FuturoThe MatrixLucy, etc.), mas uma coisa legal do livro é que se passa no momento da expectativa da ativação daquilo que, se não for nos extinguir e ponto, pode extinguir nosso modo de vida/ver as coisas.

O "paradoxo de Teseu" do título se refere a um exercício de pensamento, sobre, se após anos e anos de manutenção e substituição de partes gastas, defeituosas, de um navio, ao ponto em que não há mais uma única peça original da embarcação: ainda é o mesmo navio? E, sendo possível montar um segundo navio só com as peças antigas, qual dos dois navios é "o tal"? 

Sendo assim, se uma consciência é alçada além de seu corpo orgânico original para um 'estado de graça' sintético: ele ainda é a mesma pessoa, mesmo se a versão digital for a única que estiver sobrando? E, caso ainda sobre a original, quem é o verdadeiro pai das crianças? Quem é a autêntica pessoa amada? Quem é o autor dessa obra? Quem é o dono do imóvel? Quem é o verdadeiro Slim Shady? E, provavelmente acima de tudo: quem vai pagar os impostos?


"Eu era Dave Bowman."

Em Saros 136, uma graphic novel de seu roteiro, Alexey propõe uma passagem de tocha entre o Homo Sapiens e cetáceos por nós modificados: há, em ambas as obras, um preservar do conhecimento assim como a geração de novos seres sencientes, porém existências díspares que, devido a isso, reluta-se em reconhecê-las em pé de igualdade como gente.

Essa validação do Outro como gente talvez seja admitir, de uma vez por todas, que apenas ser Humano não é algo tão especial como tantos e tantos milênios de religiões e tradições antigas nos fizeram crer. E talvez inclua, nesse desapego, uma dose cavalar de generosidade que, como sociedade, talvez não obtenhamos tão cedo.

Paradoxo de Theséus
129 p
Draco