As Canções da Terra Distante, por Arthur C. Clarke (1986)
Ler um romance de Arthur C. Clarke que me seja inédito é prazer cada vez mais raro. As Canções da Terra Distante foi lançado no Brasil em 86 pela Nova Fronteira, mas só agora consegui ler. Havia já lido o conto original, de mesmo nome, que saiu na coletânea O Outro Lado do Céu (NF, 1984).
De saída, antes de engrossar com os spoilers, há de notar uma agradável melancolia das saudades de tudo que um dia já foi, e daquilo e daqueles que se passa a conhecer, amar, mas que terão que ser deixados para trás. Sendo ainda uma história de navegação, a perda sentida embala também nas canções apresentadas da Terra distante. Ouço um distante eco com sotaque lusitano?
No Quarto Milênio, na expectativa do fim do sistema solar com a explosão do Sol em nova, a Humanidade monta grandes naves-arca com milhares de refugiados e parte para as estrelas, em busca de, como chamam hoje em dia, exoplanetas de ambiente compatíveis com o organismo humano.
A última dessas naves, por questões técnicas, para em uma colônia já estabelecida séculos antes, batizada com o nome de nome da antiga deusa do mar grega, Thalassa, um mundo primariamente oceânico com pouca superfície de terra firme onde a pequena colônia humana prospera.
Os visitantes passarão dois anos nos reparos (a reconstrução de um escudo de gelo, destruído, para absorver o impacto de matéria interestelar), antes de seguir viagem: e o choque cultural entre ambos os grupos, por mais diminuto que fosse a tripulação desperta do longo sono para a missão, é inevitável - isso, em um grande resumo.
Os thalassianos são de uma geração de naves semeadoras anteriores a recém-chegada Magalhães, quando material embrionário era despachado para as estrelas, em vez de refugiados congelados por criogenia como com a Magalhães: a ideia era um processo de desenvolvimento levado primariamente por máquinas, antes que pudessem ter os thalassianos seus próprios filhos e seguir adiante com a civilização humana. Foram duas gerações de naves semeadoras, a segunda passando a levar gente viva congelada, depois que o processo de criogenia se provou viável.
Entretanto, a colônias como a de Thalassa eram fruto de uma experiência social, com a História e Literatura da Terra severamente editadas, extirpando o conceito de religião, Deus e quetais: dos livros que conheço de Clarke, assim como sua opinião a respeito do assunto, este é o mais severo com religião - a despeito de uma generosidade talvez excessiva com o budismo, que também está presente aqui.
Havendo então uma colônia de seres criados ao mesmo tempo com as exatas mesmas condições de educação - e, intui-se, sociais/financeiras -, além de um vasto e pelo novo mundo, o sistema político que segue vem como um futuro desdobramento de uma república democrática, criando uma sociedade quase perfeita, jovial, com gosto pela vida, embora nem tão engajada em uma certa pressa com avanços tecnológicos. Quase como se fossem uma espécie de nobres selvagens do espaço, embora explicitamente tenham uma sociedade tecnológica. Mas são um povo amistoso e feliz com o que tem, e, como tal: sem pressa. Como resultado, um certo grau de pureza e ingenuidade emana dos thalassianos, Adões e Evas em seu Éden caribenho do espaço.
Thalassa - ou Scarif, se preferirem...
O contraste é com o recém-chegado: seres humanos completos, adultos, que viram o Sol explodir, após um último meio milênio conturbado, com sociedades em crise, levando consigo traumas e amarguras em geral dos últimos dias do sistema solar. Foram expostos a guerras, religião, levantes e decisões terríveis.
Infelizmente, o conflito, como em boa parte da obra de Clarke, não chega a realmente acontecer. Seu otimismo frequentemente vence o drama. A primeira metade do livro, mais ou menos, é para apresentar o cenário, a tecnologia e a situação, os personagens, os laços entre si, assim como as novas amizades e novos amores, e alguma rivalidade. Só para a segunda metade é que a promessa de conflito surge, mas mesmo assim, ela não desenvolve. Clarke simplesmente não consegue. Havendo ainda que desenvolver a descoberta de uma espécie própria thalassiana que, pelo jeito, demonstra sinais de inteligência.
E o que resta de um livro assim? O que parece restar sempre dos livros do Clarke: tudo. Todas as possibilidades. Todas as descrições acachapantes. Todas as ideias inovadoras e poderosas. Todas as promessas.
Só para ficar no que já foi descrito: é lícito uma sociedade tecnologicamente superior - os viajantes da Magalhães, no caso - interferir, ainda que da maneira mais gentil que encontrasse, em outra menos avançada? Sim? Não? Caso não, isso valeria a vida de um milhão de futuros colonos a bordo da nave, em uma expedição que ainda duraria 300 anos e 98% de chances de sucesso em um planeta descrito como similar a Marte, em vez de uma aposta garantida ali mesmo?
Obviamente que um livro bem maior seria necessário para explorar todas as implicações sugeridas aqui. A minha favorita é encontrar um subtexto que remete ao que chamo de "a geração de Moisés": no relato do Êxodo, nenhum dos escravos libertos do Egito viveu para entrar na Terra Prometida, devido ao pecado do Bezerro de Ouro - mas seus filhos não carregariam a mácula de seus pais, assim podendo entrar em Canaã.
Tal é o contraste entre thalassianos e viajantes. Os primeiros foram ideológica e biologicamente formados para ser uma Humanidade melhor. Os segundos são a promessa dos velhos maus hábitos retornando de um passado deixado para trás de todas as formas possíveis, e mesmo alguns dentre os viajantes têm ciência disso.
Em tempos de pré-ida a Marte, torna-se um questionamento atual: quem irá para outros corpos do sistema solar? E como pretendemos nos comportar lá fora?
As Canções da Terra Distante
336 p.
Editora Nova Fronteira
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