Aviso: Spoilers abaixo.
Ancillary Justice (2013) é o romance de estreia da autora Ann Leckie, que começou já ganhando os badalados prêmios Hugo e Nebula, além de outros: nada mal, mesmo, para uma iniciante. No Brasil, uma tradução foi publicada pela ed. Aleph em 2018.
Gênero
A história é uma space opera bem próxima à "FC Militar", passando-se dentro de alguns tantos milhares de anos, com a Humanidade espalhada pela galáxia e algumas raças alienígenas, porém mais focada em povos humanos que já cultivam suas próprias culturas e ancestralidades. Apesar do que, há a presença do indefectível império galáctico, contra o qual não há escapatória, um governo humano que "traz a civilização" às estrelas e povos conquistados.
A autora investe ainda em transhumanismo, apresentando conceitos e sequências muito boas, com pontos de vista - literais - de uma mesma Inteligência Artificial alternando-se através dos diversos corpos que comanda, de parágrafo em parágrafo, às vezes mesmo diálogos. A protagonista um dia foi uma nave, sendo ao mesmo tempo a gerenciadora de suas funções e coordenadora da força de ancilares - corpos humanos sem direito à identidade conservados criogenicamente e despertos para receberem implantes onde a vontade da IA se manifestará.
Há ainda a presença de pós-humanos, os que se modificaram tanto que comunicar-se com o resto da Humanidade se torna um desafio cognitivo. Mas infelizmente eles são apresentados de relance.
A galáxia de Leckie é rica, portanto, em pontos de vista e questões culturais sempre indicados, especialmente as imprecisões da tradução de dados termos e intenções em diferentes idiomas, constantes na narrativa.
Personagens:
É uma história de vingança, onde os dois protagonistas assumem o papel de "parceiros improváveis": Breq, movido por uma vingança pessoal, encontra Seivarden, um viciado em droga, e acaba o ajudando sem nem saber ao certo por que. Com o passar do livro, a identidade de ambos vai se tornando clara ao leitor, assim como as motivações e histórias, especialmente a de Breq, pela qual as coisas andam.
Confesso que achei Seivarden não tão desenvolvido quanto poderia, sendo mais um acessório para Breq, no final das contas: no mais, sua recuperação do vício de drogas, apesar da tecnologia existente, ainda era algo para se preocupar ao nível da confiança - o que, efetivamente, leva à cena da ponte. Mas, a partir daí, as coisas se encaminham funcionais demais, ao meu ver.
Forma:
Tomando como base a inexistência de gêneros na linguagem do dominador Radchaai, a autora fez uma outra experiência estilística (além da de alternância de pontos de vista) e retirou qualquer referência a homens ou mulheres, quando as coisas eram descritas ou ditas do ponto de vista de quem falasse ou pensasse em radchaai, deixando gênero para alguns poucos momentos em outros idiomas. A tradução do livro para o português, sob autorização da autora, pôs como gênero default o feminino, para salientar, à sua maneira, uma tentativa de estranheza da obra.
Entretanto, se não tivesse chamado a atenção para a questão de gênero no idioma, eu sinto que tanto faria como tanto fizesse ser assim como seus personagens serem todos homens, como em um romance mais antigo: não há definições, redefinições dos papeis de gênero, ou qualquer debate aqui. Talvez eu esteja perdendo o ponto proposto, mas não acho que isso deixe o livro com uma "sacada genial" ou similar, como parecem insistir: um mundo que, se por um lado há a louvável equivalência entre ambos os sexos em qualquer função - e é o mínimo que se espera em sociedades humanas daqui para frente, ao ponto que em si não é a primeira obra a pensar isto -, não me parece que salientar a ausência de gênero no vocabulário confira algum valor extra à obra.
Comparemos, por exemplo, com A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin, onde tanto há a questão de gênero é algo influente tanto para a história quanto para as culturas apresentadas: aqui, parece mais uma curiosidade exótica, que sempre é lembrada, mas não parece realmente importar para mais nada.
Achei o texto, por vezes, um pouco arrastado, com o ritmo melhorando pela metade do livro: em suas inúmeras sutilezas, a autora não se furta em salientá-las, o que talvez comprometa uma fluidez melhor. Pode ser que tenha ocorrido por ter sido o primeiro livro de uma série, vendo-se na obrigação de apresentar o máximo de informação possível a um leitor, com uma escrita mais ágil nos volumes posteriores.
Mas não só de poréns e entretantos vive a história: na busca por vingança pessoal contra o imperador galáctico, a ex-nave de guerra que é a protagonista promove uma guerra de uma pessoa só, apenas para descobrir que o imperador também está em uma guerra de uma pessoa só - civil, no caso, que já dura séculos e produz suas vítimas: pois em seus múltiplos corpos, o imperador não concorda sempre consigo mesmo, mergulhado em um dilema insolúvel provocado por uma potência alienígena ameaçadora maior do que o Radch...
... e isso é uma história que vale à pena ler.
Sendo parte de uma trilogia, espero que a Aleph venha a publicá-la por inteiro.
Recomendo.
384 p.
Editora Aleph
3 comentários:
Eu li essa obra logo que foi publicada. Achei muito bom, recomendo. Confesso que essa coisa de gênero parece parece gratuita em português, mas só fica estranho em passagens afetivas - às vezes parece que todos os casais citados são gays, e todos os personagens citados (supostamente mulheres) só tem casos com mulheres. Realmente, poucas são as passagens em que parece haver algum ser masculino. O imperador me parece a Chrisjen Avasarala da Expanse, pensava nela o tempo todo. Mas como vc disse, as descrições físicas das impressões da AI pulando de ancilar em ancilar, essa parte ficou muito legal. Comecei a ler o livro 2 em inglês, mas pareceu meio estranho, acho que tenho de reler o 1 pra pegar o embalo do 2.
Pergunto: vc já leu "O Andróide", do brasileiro Paulo de Castro? Só encontrei uma resenha, bem raivosa contra o livro, e queria trocar ideia com outros leitores. Obrigado pela resenha, foi muito bom rever esse livro, até mais!
Oi, Marco, que bom que vc gostou da resenha!
Do livro O Androide, não conheço não... na vdd, nem sabia que existia.
Abraços!
"Se não tivesse chamado a atenção para a questão de gênero no idioma, eu sinto que tanto faria como tanto fizesse ser assim como seus personagens serem todos homens, como em um romance mais antigo: não há definições, redefinições dos papeis de gênero, ou qualquer debate aqui" -- Muito bem observado. Uma coisa que me incomodou na leitura desse romance foi a perspectiva de que uma suposta igualdade de gênero sexual não levaria necessariamente a uma sociedade mais igualitária. O império descrito no livro, com suas cores de Império Romano, é mais opressivo e violento que a nossa sociedade atual. Vai um pouco além da questão de redefinições dos papéis dos gêneros sexuais, e faz lembrar as críticas que se faz em torno do "feminismo" ou "colonialismo imperial" (https://en.wikipedia.org/wiki/Imperial_feminism). Na minha percepção, uma igualdade entre os sexos que leva apenas a uma participação igualitária nas oportunidades oferecidas por uma sociedade intrinsecamente injusta. Pra além dessa questão, gostei muito da sua crítica e da forma como buscou analisar todos os elementos da composição do romance.
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