Cyberpunk e noir são dois gêneros que se comunicam desde antes o estabelecimento do primeiro, conforme qualquer um que tenha lido Blade Runner - o Caçador de Andróides (1968) sabe disso. De Rick Deckard a Nick Bannister há uma árvore genealógica que, é claro, precede o romance de Philip K. Dick em décadas.
Uma interação recente entre ambos os gêneros é o filme Os Caminhos da Memória (Reminiscence, 2021), que foi escrito, dirigido e produzido por Lisa Joy, que recentemente se envolveu em projetos como as séries Westworld e Periféricos: (ir)realidades virtuais é um tema com que já está acostumada.
Então, do lado noir, temos:
Hugh Jackman como o detetive. No caso, é especializado em guiar pessoas por uma tecnologia de reavivamento de memórias (que, é contado, começa como um sistema de interrogatório policial, mas em breve ganha o gosto como tecnologia de lazer*), trabalhando ocasionalmente com o departamento de justiça, mas os achados de seus casos estão na memória de seus clientes.
Rebecca Ferguson - mais recentemente Lady Jessica no novo Duna (2021) - é a "mulher fatal" desse tipo de narrativa, que entra no escritório do detetive alegando um motivo para contratá-lo quando, na verdade, começa uma trama conspiratória que irá tragá-lo, e vai caber à obsessão e um bocado de sorte por parte do detetive sobreviver, até os motivos de tudo serem revelados.
Thandiwe Newton como a secretária/confidente/apaixonada secretamente pelo detetive. Há um desenvolvimento interessante do que seja a figura dessa parceira, aproveitando o peso da atriz.
Ainda do noir, temos a corrupção extrema das elites, sob a velha capa da respeitabilidade, e decifrar seus motivos escusos faz parte do resultado final. Mas com o cyberpunk trazendo a tecnologia de registro, cópia e edição de pensamentos e memórias, discernir o fato se tornar ainda mais complicado. Um take bem fascistoide da análise desse tipo de subjetividade está na polícia pré-crime de outra adaptação de P. K. Dick, Minority Report: A Nova Lei (2002) (a série de 2015 que não foi muito adiante era mais interessante); O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança
Do cyberpunk, temos portanto alguma forma de realidade virtual, abuso de tecnologia, diferenças sociais alarmantes e, no caso aqui, um mundo pós-aquecimento global em que o nível dos mares elevou-se drasticamente, com cidades como Miami e Nova Orleans - onde se passa a ação - semi submersas: terra seca, natural ou artificial, é objeto de status e cobiça, trazendo a especulação imobiliária de novo como vilã da história e assim se reencontrando com o noir. Os cenários alagados ou inundados compõem o grosso da ambientação de ficção científica, que não prima aqui pela presença maior de gadgets ou veículos futuristas, a não ser quando necessário.
O filme custou R$54 milhões e flopou globalmente ao arrecadar 16 milhões somente: muitos podem ser os motivos pra isso, como mau timing ao lançá-lo ou algum outro aspecto da campanha de marketing. Ou talvez porque o combo 'realidade virtual', 'identificação e identidade' e 'história de detetive' já sejam meio que derivação da derivação, a essa altura do campeonato. Navegar por memórias duras revividas ou se esconder em uma doce mentira? Algo assim consta, pelo menos, desde Nirvana (1997). O final, feliz, pode ser ilusório como a natureza dessa história: não é à toa que a lenda de Orfeu e Eurídice é contada do jeito que foi.
Gostei de ver Angela Joy trabalhando com rostos que lhe são familiares: Thandie Newton e Angela Sarafayan estão em Westworld, que é criação sua com o marido e também roteirista Jonathan Nole.
Se recomendo? Achei interessante o bastante pra tentar me desenferrujar e escrever esta resenha, compor o texto e tal. Não pareço muito entusiasmado? É, acontece...
Disponível no Amazon Prime.
14/02/2023
* a ideia do tanque em casa de tecnologia avançada que serve apenas para sustentar um vício em vez de apenas cumprir uma devida função aparece na série francesa Ad Vitam, já resenhada no blog, mas o mote é a juventude eterna. Procurando aqui, infelizmente não está mais no catálogo Netflix.