terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Ad Vitam


SPOILERS ABAIXO.

Ad Vitam é uma série francesa de 2018 de FC e mistério policial, passando-se aproximadamente daqui a cem anos.

A TV inglesa já vinha nos dando séries "near future" há algum tempo: Years and Years é de 2019 e vai até os próximos 15 anos e fala da ascensão da extrema direita no país, enquanto que Humans (refilmagem de um original sueco) parte do princípio que andróides são uma tecnologia pronta e implementada na sociedade.

A sinopse do IMDB diz que

Em um futuro onde a tecnologia de regeneração permite humanos viverem indefinidamente, um policial e uma jovem problemática investigam uma estranha onda de suicídios juvenis.

Ou seja, a influência sobre a sociedade é essa tecnologia que permite um tipo de juventude eterna. Ela já está estabelecida, e é celebrada: logo no primeiro capítulo, temos flashes de como é esse mundo, onde o aniversário da pessoa mais idosa do mundo - uma mulher - é comemorado planeta afora, ao completar 161 anos de idade.

É uma sociedade aparentemente estável, pois o tratamento para a juventude é garantido a todos e a base da pirâmide social não parece apresentar pobreza em massa. A morte é uma ocorrência rara e desagradável, com cemitérios sendo desmanchados por falta de uso e de visitas.

A descoberta em 1998, no mundo real, das propriedades de rejuvenescimento de uma espécie de água-viva, a Turritopsis nutricula (a espécie em si havia sido catalogada já em 1848), leva à descoberta, na ficção, de uma variante chamada Turritopsis draculea, que é de onde o fenômeno é finalmente decifrado e convertido em um bem para a Humanidade.

A descoberta dessa água-viva (há uma intercambialidade aqui entre água-viva e medusa, mas deixemos como está) foi tão importante que, quase cem anos depois, ela é um marco cultural. Sempre há alguma menção, desde a primeiríssima cena do primeiro episódio, hologramas, etc.

Trailer de Ad Vitam.

Ao mesmo tempo, está a dias de acontecer um plebiscito que irá impor uma restrição à natalidade, pois em um mundo de juventude eterna, a necessidade de novas gerações diminui, portanto, como acolhê-las, já que aposentadoria não necessariamente é algo tido como garantido? Não bastasse, ainda é o mundo do aquecimento climático e escassez de recursos, onde a principal forma de alimento passa por insetos processados, e a carne é uma raridade. O número "quatro bilhões" para descrever a população global surge aqui e ali ao longo da série. É citado uma grande praga no passado que matou muita gente, o que pode ter contribuído para o número atual.

Mas o que não quer dizer que tudo são flores: pessoas têm um jeito todo... próprio... de se relacionar com o que lhes poderia ser positivo e seguro. O narcisismo pode levá-las a banhos diários de rejuvenescimento. Preservar perfeitamente um antigo restaurante só pelas memórias que traz. A morte pode ser um evento raro, mas a principal causa é o parricídio. Pessoas podem ter múltiplas carreiras ao longo de uma mesma vida, mas o tédio pode consumi-las. E, mesmo diante da chave da imortalidade e juventude, elas ainda podem querer mais.

O conflito social aqui passa por direitos do indivíduo, o que faz sentido ser uma série francesa, cuja sociedade sempre é engajada, conforme vemos mesmo hoje em noticiários. No caso, questões a respeito da jovialidade e imortalidade: a maioridade legal é de 30 anos, idade mínima para o rejuvenescimento funcionar em um organismo com segurança. Pessoas que, hoje em dia em nossa sociedade, são adultos aptos para o mercado de trabalho e constituírem família na série são condenados a uma adolescência tardia.

Christa e Darius: a improvável dupla investigando um crime, com o mérito de fugirem de todos os clichês.

E a essas tantas, entram os protagonistas: Darius e Christa são, respectivamente, um policial com aposentadoria compulsória em vista, após 99 anos de serviço ativo, com muita bagagem e um evento traumático em sua vida logo na época  quando começaram a aplicação do rejuvenescimento que o assombra até hoje; e uma menor de 24 anos de idade que sobreviveu a um culto de suicídio jovem dez anos antes da nova onda, conforme na sinopse acima. Cada um em seu momento de vida, e a incerteza os norteia por igual.

Os personagens secundários dão a chance de ter mais reações a esta sociedade, como um policial que, aos 30 anos, reage muito mal ao presenciar alguém morrendo. Os pais de Christa, bem resolvidos na sociedade, ambos já em suas terceiras carreiras, com ela descobrem que ter um filho não é a coisa tão perfeitamente programada assim: ter uma água-viva de estimação é bem mais simples.

Christa e sua irmã adotiva.

A investigação passa por alguns níveis diferentes da complexidade da sociedade apresentada, até o epílogo onde um grande e anônimo oponente é apresentado. Como no gênero noir, é antes sobre sobrevivê-lo a realmente vencê-lo. E as coisas são como são.

Eu não pude deixar de notar que o tema de vampirismo possa ter sido abordado, de forma bastante sutil, mais às claras neste epílogo (não me entendam mal: é uma série de ficção-científica, ponto. O único outro gênero com que ela cruza é o policial).

Mas tomemos Drácula (cuja mini-série hiper-recente eu resenhei aqui)  como exemplo. Talvez parte do sucesso da história de Drácula seja por um motivo que não sei se Bram Stoker estaria ciente... há uma crítica social embutida, ao se descrever alguém da aristocracia predando em cima de gente comum ao redor e sem controle. Pode ser visto, ainda, quando o velho não deixa que o novo vingue, dele servindo-se para se revigorar, às custas da vida do novo. Ou, a espécie da água-viva imaginária não seria draculea (em oposição a nutricula da vida real) à toa.

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