sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Devoradores de Estrelas


Debulhadores de Explicações

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Devoradores de Estrelas (Project Hail Mary - link pra wikipedia aqui), de Andy Weir, é passado em um futuro próximo, quando a energia emitida pelo Sol enfraquece rapidamente e o bastante para ameaçar a existência do ser Humano. Colônias de incontáveis seres unicelulares batizados astrofágicos (do neologismo original astrophage - o que significa que deveria ser astrófago, não?) são as responsáveis por isso, e percebe-se que é um problema de dimensões interestelares: outras estrelas vizinhas estão com o mesmo problema. O protagonista é o sobrevivente de uma tripulação internacional elencada para a primeira viagem interestelar da espécie Humana, para descobrir porque a estrela de destino - Tau Ceti, a cerca de 12 anos-luz de nós - não está sendo afetada e, uma vez lá, descobrir a solução para o nosso problema.

A narrativa se alterna entre o tempo presente da missão, no momento em que o dr. Grace desperta de seu sono após anos em coma induzida, e a sequência de eventos, na Terra, que aos poucos o levou a estar naquela missão. Essa quebra em dois momentos serve para mostrar diversos motivos por trás do momento do presente, e é dado, narrativamente, um motivo pra isso: Grace enfrenta uma amnésia severa, a que se atribui como efeito colateral do coma. É algo bem crível, dado que ao número de coisas erradas se acrescenta a morte dos dois outros astronautas que viajavam com ele, e que, a princípio, não sabe quem são - apesar de um sentimento forte de familiaridade com eles. É um despertar envolto em mistérios, um tipo de trama presente em games e filmes, em que encontrar objetos e descobrir seu funcionamento ativa sequências de flashback. A essa altura um recurso manjado, na verdade se tornou um ponto alto da história, ao meu ver. Porém...

Andy Weir começa, com um terceiro romance, a soar como um autor de um truque só: a voz do protagonista é a mesma. 

Não vejo maiores diferenças entre o Ryland Grace daqui e Mark Watney de Perdido em Marte, e mesmo Jasmine 'Jazz' Bashara, de Artemis: não somente fica tudo nas costas da protagonista, com pouco uso para coadjuvantes (ok, debatível aqui, conforme mais abaixo), como temos o indivíduo x meio ambiente repetido pela terceira vez (sim, pondo Artemis nessa, um ambiente social), no qual novamente tal indivíduo, para resolver o dilema em que está metido, terá que "science the shit out of this", conforme no roteiro do filme Perdido em Marte (em uma fala que não foi do autor). 

Em tempos de boçalidade naturalizada, um protagonista inteligente tem sua vez? Mas especialmente em tempos assim. Mas isso, em si, não é o problema. O problema - meu, ao menos... - é a sensação de repetição de como o personagem é estilizado por Weir: três vezes é um padrão.

Este indivíduo é genial, com um pé menor ou maior fora da sociedade/sociabilidade, no melhor estilo "inteligente demais para seu próprio bem". As descrições técnicas, tecnológicas e científicas que sempre lhe vêm com facilidade, mas que podem pesar o texto para o leitor, são contrabalançadas pelo mesmo humor que adiciona uma piada, palavrão ou outra informalidade para quebrar com esse peso. 

E Devoradores de Estrelas tem descrições. Aos montes. Tive a impressão que mais do que Perdido, mais do que Artemis, em que ele tem que montar a cidade lunar inteira. Parece que Weir se deu ao trabalho de explicar tudo o que conseguiu pensar sobre cada princípio teórico a respeito de seus astrófagos, do método desenvolvido para conhecê-los melhor, das descrições materiais da tecnologia desenvolvida para isto, como chegar a uma tecnologia de combustível - e nem chegamos ainda à parte em que a história vai para Tau Ceti, e encontra uma segunda forma de vida alienígena. O resultado, infelizmente, é - ou me foi - cansativo.

São poucos os personagens de monta. No passado, há Eva Stratter, coordenadora "carta branca" para solucionar da maneira que for o problema da ameaça mundial. Ela se opõe a Grace, não de uma maneira ideológica, mas enquanto postura. Grace, vamos aprendendo, não é exatamente um personagem gostável, nem vai demonstrar a iniciativa (ainda que em nome da sobrevivência) de Watney ou Jazz. É como se fosse uma variante whinny bitch de ambos, ao ponto de poder pôr tudo a perder, se dele dependesse - e, adivinha? Depende. 

A redenção de Grace vem pelo convívio enquanto náufragos interestelares dele e do alienígena vindo da estrela 40 Eridani, ali por Tau Ceti pelo mesmíssimo problema. Apresenta-se como algo similar a uma aranha de cinco patas do tamanho de um cão labrador, cujo contato se mostra parte do desafio a ser superado: ambos têm que se entender para poder superar seus problemas. A personalidade do alienígena, apelidado Rocky, serve como alívio cômico na estratégia de diluição de infodump do autor. Mas não é algo irritante, muito pelo contrário, torna-se - sem maiores competições - o personagem mais gostável da história. Apesar de ser uma aranha de cinco patas vivendo em um ambiente intolerável para humanos, ele é dotado de virtudes que o tornam facilmente gostável, e, acima delas, uma solicitude que é o que falta em Grace. Rocky acredita piamente no que deve fazer, o que somos levados a pensar sobre Grace - quando finalmente as memórias de logo antes da decolagem lhe são destravadas.


Algo contra o universo sendo salvo através do poder do bromance da amizade em uma obra de hard s.f.? Nem um pouco! (fonte)

Em termos de ficção científica, Weir nos brinda com mais um livro de hard science fiction: o mínimo possível de ficção antes que escape dos dedos de nosso entendimento das leis da Física. Ele parece continuar, pelos motivos acima, repetir com o que deveria ser um erro: a tentação em mostrar uma pesquisa que certamente lhe foi fascinante ao leitor.

Os cenários em si não são de maiores arroubos. O futuro poderia ser ainda nessa década (Weir parece gostar de near future, se considerarmos Perdido em Marte se passando em 2035 e Artemis em 2080), e o mundo de Tau Ceti e, além de 'belas nuvens verdes', não demonstra muito, com a ação se passando mais em sua órbita, quando chega sua vez. Outros exoplanetas, até por terem perfil semelhante, de espessas camadas de nuvens de dióxido de carbono, oferecem pouco para um sense of wonder. O cenário insólito melhor apresentado - até porque, descrições... - é a Hail Mary, a nave que leva Grace e seus companheiros desafortunados. Assim como em Artemis (aliás, resenhado aqui) há diagramas da cidade no início do livro, um esquema do funcionamento da nave é apresentado.

Tau Ceti é um velho rosto conhecido da ficção científica, figurando em romances de Harry Turtledove (o sistema natal da Raça da série Warworld), Kim Stanley Robinson (Aurora) e Ursula K. LeGuin (Os Despossuídos), entre outras obras e autorias: ocorre que, em uma distância de "modestos" 12 anos-luz, chama ainda atenção pelas similaridades com nosso Sol, o que poderia sugerir planetas próprios, semelhantes ao nosso (ainda que nenhuma primeira detecção de exoplanetas por lá tenha ainda sido confirmada). 40 Eridani é um sistema estelar triplo distando de nós 16 anos-luz, e - salvo até nova mudança - onde orbita Vulcano, lar do Sr. Spock e sua raça paterna. Estranhamente, Weir parece pular as duas estrelas extras, apesar de tratar o - provável - exoplaneta local com algum cuidado.

Mas não é nem perto do que ele resolve pular, enquanto construção de uma psique e sociedades inumanas, como a dos eridianis, apesar do investimento em sua biologia. Obviamente que isso estouraria o limite de qualquer livro, e imagino que, nos agradecimentos, a ausência de alguém ligado às ciências humanas e sociais denotaria onde realmente ele preferiu priorizar a pesquisa. 

De qualquer maneira, os eridianis podem ser lido como detentores das virtudes - do ponto de vista ocidental - perdidas pelos humanos, de seu indivíduo ao seu comportamento coletivo. Penso se não pode haver uma reciclagem de alguma espécie de nobre selvagem, a quem falta a malícia do 'homem moderno'... ainda, o final escolhido por Grace não o tornaria um 'gone native white savior'? 

Cartas para a redação.

Em suma: achei muito imaginativo, mas que o excesso de descrições pode deixar o resultado um pouco aquém. O melhor exemplo que ainda conheço de escritor de hard s.f. é Arthur C. Clarke, que nem nos damos conta que ele é um escritor versado nesse subgênero. Fica a dica?

Devoradores de Estrelas
424 p.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Tolkien e construção de mundos

 Excerto de entrevista de JRR Tolkien, onde ele fala a respeito de criar um mundo. Interessante, até pelo tempo da entrevista, que o termo worldbuilding não é mencionado. 



quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Worldbuilding: Universos Ficcionais Brasileiros

 Estou com um questionário dedicado a universos ficcionais feitos no Brasil e suas autorias, quem quiser preencher / puder divulgar, agradeço muito: https://forms.gle/73QDsgtdHLihXHug6

A ideia é lançar os resultados de qualquer modo até fim do ano. Se houver interesse e procura o bastante, divulgo em novembro, em um simpósio.