terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Drácula



SPOILERS ABAIXO.

Drácula (2020) é a novíssima série disponível no Netflix que tem o mérito de trazer sangue fresco - piscadinha, piscadinha - ao tema de vampirismo e do personagem.

É uma alternate fiction, em que uma obra é contada de outra forma ou acrescentado um novo conteúdo: a obra assim mais conhecida até agora é a série em quadrinhos (esqueçam aquele filme horroroso) A Liga dos Cavalheiros Extraordinários, de Alan Moore e Kevin O'Neil.

A mini-série tem três capítulos somente, de coisa de 1:40 de duração, nos moldes de Sherlock, não por acaso também dos mesmos produtores, o que por tabela coloca Doctor Who no radar.

Os três episódios se dão em duas épocas e 3 cenários bem distintos: os dois primeiros se passam no final do Século XIX e o último agora em 2020, e no Castelo Drácula, a bordo do Deméter e na Londres atual.

E é aqui que entra a nova ideia: a exploração de certas lacunas deixadas em aberto na obra original, pois sendo um livro epistolar, Drácula apenas mostra os pontos de vista de quem testemunha, de perto ou de longe, o que está acontecendo, e nem sempre tudo é revelado, entre o trauma passado, algumas omissões por escolha própria ou falta de testemunho vivo. Ao procurar responder essas lacunas, os roteiristas dão prova do cuidado e esmerada atenção que têm com a obra original.

Claes Bang: o novo Drácula.

#1 The Rules of the Beast
O primeiro episódio explora, em dois sentidos, o Castelo Drácula, em estrutura antiga e labiríntica na qual Jonathan Harker se perde cada vez mais, da qual não é possível sobreviver para contar a história, em um crescendo de medo e desesperança. A situação sugere ao lugar uma mitologia própria, por assim dizer, o que o deixa bem mais interessante, com segredos que mesmo o senhor do castelo não está a par.

Das adaptações dos personagens originais, foi a de Harker que ficou mais interessante e é o primeiro com quem nos deparamos, engenhosamente confundível com Renfield. Ainda assim, até o final, é alguém que não cede ao mal que sobrepõe-se a ele - embora ele seja apenas humano, no fim das contas.

Temos ainda Mina Murray (Morfydd Clark, recém-saída de His Dark Materials como Irmã Clara), a noiva de Jonathan, pouco explorada, mais servindo para pontuar a tragédia do noivo - e foge do que se prova um fatídico encontro. O outro personagem de relevância aqui é um novo, uma repaginação de Abraham Van Helsing: Agatha Van Helsing, uma freira com problemas com a fé e de intelecto inquisitivo, caçadora do sobrenatural. Agatha está interrogando Jonathan, depois que, desfalecido e adoecido, ele é descoberto no rio que passa perto do Castelo Drácula e levado até o mosteiro romeno onde se dá também o episódio*.

#2 Blood Vessel
O segundo episódio conta fatídica viagem do Deméter, que trouxe Drácula para a Inglaterra. Com os hábitos alimentares do protagonista, sumiços vão ocorrendo, e um clima de 'whodunit?' é instalado: quase como um romance de Agatha Christie, onde o assassino em um ambiente controlado é deixado para ser investigado pelos convivas. Mas não há Poirot ou Marple aqui.

Os demais passageiros do navio e seus tripulantes não são somente desenvolvidos, são criados da estaca (piscadinha, piscadinha) zero, com histórias delineadas, personalidades e motivações bem definidas - tendo mais em comum do que inicialmente podem crer. Como em um primeiro momento do episódio é alertado, "cheio de personagens interessantes - não vá se apegar a nenhum."

Nesse episódio, uma nova ideia apresentada no inicial é melhor desenvolvida: sangue é vidas. Plural. Pelo sangue, Drácula é capaz de saber das histórias de quem se alimenta, e absorver suas habilidades, como um idioma. Mas mais do que isso, conforme se verá no terceiro episódio, sendo um conceito crucial (piscadinha, piscadinha) para a mini-série inteira. Vemos também sobre um pouco mais do que é o 'undead' nesse universo ficcional.

Faixa-bônus do segundo episódio: a presença da atriz Catherine Schell como a Duquesa Valeria. Ela foi uma das garotas de 007 - A Serviço de Sua Majestade (aquele, com o Lazenby) e trabalhou em Espaço: 1999 (1975-1977) no papel da alienígena Maya.

#3 The Dark Compass
O terceiro episódio é o que mais tem mudanças em relação à obra original: após uma ótima reviravolta ao final do segundo, Drácula desembarca na Inglaterra com 123 anos de atraso, em pleno agora. Aqui, da história original, temos a aparição do rico texano Quincey, Dr. Jack Seward e Lucy Westenra, todos no papel de jovens de seus 20 e poucos anos. Notei a ausência de Arthur Holmwood, o Lorde Godalming**, terceiro dos pretendentes de Lucy, talvez limado por falta de tempo, uma certa redundância com Quincey e mesmo o risco de um anacronismo.

O interessante aqui é que a correlação entre os personagens é 'fast and furious', com a banalização das relações no nível da superfície, entre quem quer o dinheiro de um e quem quer a beleza do outro. Jack é um apaixonado por Lucy, mesmo após terem tidos relações algumas vezes, mas ela é completamente descolada desse tipo de afeto, mais se deixando levar pelas promessas financeiras de Quincey, de quem vira noiva (na obra original ela se decide por Holmwood): e é exatamente por esse grau de descolamento afetivo que Drácula cresce o olho em cima.

Mas entra em cena uma outra novidade, a Fundação Jonathan Harker, uma joint-venture das famílias Murray e Van Helsing, para fins de pesquisa médica e outras que não são exatamente ortodoxas. Jack é um estagiário, aqui. Uma sobrinha-bisneta de Agatha (Abraham não é citado em nenhum momento), reaproveitando a mesma atriz (Dolly Wells, que com Clark estrela Orgulho, Preconceito e Zumbis), é uma das cabeças da fundação, a responsável no fim das contas por trazer Drácula à Inglaterra dos dias de hoje, aprisionando-o a muito custo... apenas para ser solto por um advogado de nome Renfield.

O episódio se encerra de maneira muito interessante, conseguindo uma explicação incrivelmente racional sobre o motivo de vampiros se comportarem mal diante de cruzes, luz solar, etc. e tal. E é dessa compreensão que sai a resolução do conflito, e mesmo um sentido de paz para quem viveu ansiando por 500 anos. Esse desenvolvimento foi, definitivamente, um dos pontos fortes da mini-série inteira.

E do Drácula?

Não conhecia o ator dinamarquês Claes Bang. Achei que seu Drácula corre para todos os lados, não é possível que a série não tenha sido tentada a homenagear o que veio antes. Podemos ver algo do Gary Oldman de Drácula de Bram Stoker (1992), talvez haja mesmo Bela Lugosi, e definitivamente eu vejo, ao menos, Christopher Lee - detalhe para a cena da cripta, no primeiro episódio: é a gomalina certa com os esgares certos.

Um legado.

Mas não pude deixar de lembrar do Jerry Dandridge de Chris Sarandon no A Hora do Espanto (1985) original, com o deboche sempre no canto da boca. Mas imagino que isso seja devido à escrita da série, definitivamente com a assinatura de Steven Moffat (Sherlock, Doctor Who), especialmente no primeiro episódio. A saber: respostas rápidas e engraçadinhas, pequenas reviravoltas, personagens excêntricos, nojinhos estratégicos e a sensação geral de que eu assistia uma iteração do Doutor contra o Mestre. Tudo feito de uma forma que, pessoalmente, estou um pouco cansado. Foi o que vi Doctor Who a se reduzir, mas isso é outra história. Ainda, o conceito de memória vinda pelo sangue me é, de alguma forma, similar ao da memória ancestral genética, que Moffat aplicou em sua ótima Jekyll (2007).

E do terror?

A maquiagem dos mortos-vivos funciona, os sustos fáceis estão lá, a antecipação e atmosfera necessárias também. Mas a dimensão do terror/horror vai além disso, como na relação de Harker/Renfield com insetos, gerando propositalmente um belo incômodo, assim como a promessa do sofrimento mesmo depois da morte: dado momento, em um cemitério, Drácula conta 9 'sofredores', mortos que não perderam a consciência, e tentam desesperadamente sair de seus caixões e túmulos.

E em uma das variantes mais bacanas da obra original foi a saída de Lucy Westenra da cripta... sendo que ela foi cremada. Há, segundo certas fontes na religião, que se esperar pelo menos 24h antes da cremação de um corpo, prazo necessário para a alma se desligar de seu corpo original e não sofrer com a queima do próprio - acho que vocês entenderam o recado.

Tem tudo para ser uma temporada somente, embora deixe questões bem em aberto, especialmente: qual é, afinal, a fonte de financiamento da Fundação Jonathan Harker? Mas gostaria, mesmo, é de saber que, se existe Drácula e ele passou o final do Século XIX mais XX indisponível para o mundo, e Lord Ruthven foi apenas um dândi que nunca foi um vampiro como no livro de Polidori; que obra popularizou o termo e o conceito de vampiro na cultura daquela realidade apresentada no filme?

No final das contas, apesar da minha implicância, o saldo é positivo. Drácula merecia uma presença melhor depois da terceira temporada de Penny Dreadful (2014-2016), do filme de 2014 e da série de 2013, e acho que aqui se conseguiu.

EDIT
Graças a alguns comentários aqui e ali, corrijo algumas imprecisões, ora no próprio texto, ora à parte, por aqui:
* Havia um mosteiro próximo ao Castelo Drácula, para onde originalmente Harker havia sido levado após cair no rio, fugindo de lá. Mina se encontra ali com ele e ambos se casam, tudo isto, originalmente no livro.
Há uma "irmã Agatha" também, mas ela é citada en passant.
** Pisquei e perdi: em sua carta no primeiro episódio, Mina descreve Holmwood como provável interesse, caso Jonathan "se distraia". Mas foi só.

2 comentários:

jGp disse...

Bela resenha ! A série me envolveu por apresentar elementos horríficos associados a "gallows humor". O episódios no convento foi excelente, assim como o episódio no cemitério foi perturbador e sombrio.

Ana disse...

Que legal! Fiquei interessada principalmente no episódio do navio. Vou conferir!