quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Silicone XXI

Purgatório da beleza e do caos: Silicone XXI, de Alfredo Sirkis (Record, 1985)

A morte recente de Alfredo Sirkis (1950-2020), político e ativista ambiental, acabou me fazendo finalmente ler seu único romance no campo da ficção científica, lançado em 1985 e situado em um Rio de Janeiro no distante ano de 2019.

A obra é claramente influenciada por Blade Runner: o Caçador de Androides (1982), com uma investigação policial, androides para fins sexuais, arranha-céus e carros aéreos, mas estes elementos levam à criação de um "romance policial futurista", consta na capa da frente ("seu primeiro roman noir", conforme informação da quarta capa): em vez de se tornar apenas uma cópia, afasta-se da referência original e traz questões próprias nossas.

E como bom noir, uma investigação policial encontra em seu caminho uma conspiração de alcance apocalíptico e nacional, no caso. Personagens no escuro, nem sempre as peças se encaixam a princípio, uma galeria de tipos singulares: Sirkis talvez - talvez - aqui tenha problemas de timing de apresentação e caracterização dos personagens. Pareceu-me que alguns personagens mais saem da cartola do que são realmente apresentados. Tive a impressão, ainda, que só pela metade do livro que a história, de fato, engrena - e engrena bem.

Costumo dizer que ficção científica envelhece rápido e envelhece mal, e aqui não é exceção. Claro, toda obra e autor são frutos de seu tempo, e talvez seja por isso que a FC padeça em especial por causa disso: suas extrapolações - conceituais ou tecnológicas - são calcadas no que o autor tem ao seu redor, entre a vivência cotidiana e hipóteses científicas de então.

Mas Silicone XXI é engraçado: há aquilo que envelheceu, há aquilo que se manteve atual e há aquilo inesperadamente atual. A saber:

Naquele futuro eletrônico sem ser digital; este Rio de 2019 não chegou nem perto de ocorrer, assim como aquela Los Angeles de 2017. Mas é mais do que armas laser, robôs, androides sexuais e aerocarros que, até aqui, nunca existiram, convivendo com a VARIG e micro-disquetes de computador que, se existiram, já se foram há tempos: há uma malandragem carioca como é descrita e escrita que nos faz pensar em algum filme de Hugo Carvana, entre os ditos tipos cariocas e seus diálogos... eu não sei se ainda valeria.

O clima noir não parece resistir muito ao otimismo do ideário do autor: o Rio retratado dispõe de metrô, monotrilho, calçadas rolantes e aerotransporte: para travessias sossegadas mais longas, dirigíveis a hélio. Na Avenida Rio Branco há um calçadão volante, o Centro é uma parte preservada em que não há mais novas construções. O Brasil é um regime parlamentarista onde predomina a coalizão entre sociais democratas e verdes. O Programa Nuclear Brasileiro - grande questão de época - foi desativado por plebiscito em 2005, e comunidades alternativas longe dos grandes centros urbanos prosperam, social e economicamente, mantendo autonomia graças à energia solar, e uma própria diversidade ideológica e religiosa, quando aplicado, em respeito umas com as outras.

As preocupações de Sirkis com o meio ambiente não podiam deixar de estar presentes: o início do livro se dá no Olympus Aerotel, uma edificação encravada no meio do Morro Dois Irmãos, cartão postal da zona sul do Rio de Janeiro e, desde 1992, reserva ambiental. O cenário evoca um certo espanto tanto pelo conceito arrojado de um prédio localizado em tal localidade, acessível somente por aeronaves; quanto pelo desplante facilmente acreditável por estar nesse lugar: dá a impressão que o Rio de Janeiro é uma cidade em que leis de urbanismo, paisagismo e preservação ambiental parecem apenas prorrogar o que é inevitável na melhor das hipóteses, e na pior delas ser apenas outro nome para "taxa de suborno".

Tais preocupações talvez sejam a única coisa sem realmente envelhecer de 1985 para cá, infelizmente.

Mas quem poderia se opor a tudo isso, senão elementos reacionários de contornos positivistas, assim como oriundos de radicais das Forças Armadas - no texto, cabe salientar, perfeitamente ajustadas na atual sociedade - que, bêbados na crença de seus delírios e discursos grandiloquentes, vale tudo para impedir o avanço do socialismo e homossexualização programada, até mesmo um atentado à adutora do Guandu: extremismo confesso e desavergonhado que, divulgado pela mídia interessada em ibope, ganha imenso apoio popular...

... familiar?

Em outra inesperada atualidade, um alvo das forças reacionárias é a "comunidade andrógina", abordando a questão atual de pessoas transgêneras e a transfobia, encontrando apoio de parte da sociedade a este discurso doentio.

Concluindo: Silicone XXI é um bom registro de época, abordando questões de então e projeções dentro do credo do autor, com erros que nos fazem sorrir, e acertos nos fazem refletir e mesmo nos preocupar. É, também, uma aventura policial, e pode - e deve - ser lido desta maneira, para quando se preferir. Aliás, na batida de ser uma obra pop, a edição providencia capa e ilustrações de miolo seguindo a estética dos quadrinhos sendo feitas por Al Voss, artista franco-alemão que morou no Brasil, projetou capas para os Mutantes e chegou a trabalhar para a Métal Hurlant, sendo conhecedor da linguagem das HQs: o aerógrafo de capa envelheceu mal particularmente bem.

Silicone XXI
200 p.
Editora Record

sábado, 15 de agosto de 2020

Metanfetaedro



Metanfetaedro – Ficção Científica Brasileira
Vizinhanças do estranho: Metanfetaedro, de Vic Vieira/Alliah (Tarja Editorial, 2012)

Metanfetaedro é uma coletânea de Vic Vieira, então assinando como Alliah. Saiu pela extinta editora Tarja, dedicada à publicação de literatura fantástica. O livro tem oito contos independentes, dois deles interligados no sentido de terem as mesmas protagonistas. Acompanham os contos ilustrações de capa e miolo de sua própria autoria.

Os escritos se propõem a seguir a corrente do New Weird, tornando-se até então uma das poucas publicações assim aqui no Brasil.

Pessoalmente, eu tenho a impressão que, do New Weird, há a tentação de cair em um rococó de adjetivos e nonsense que pode facilmente suplantar a própria história sendo contada: o que, conforme se apresenta, não é o caso aqui. Eu e Gerson Lodi-Ribeiro chegamos a receber um conto do autor em 2012 para a antologia que coordenamos, Super-Heróis (Draco, 2013), mas que infelizmente não pudemos aproveitar, e era completamente da mesma safra.

A Tarja, aliás, publicou obras dentro do subgênero até então inéditas no Brasil, como Alquimia da Pedra, de Ekaterina Sedia e a primeira tradução de China Miéville no Brasil de Rei Rato, ao contrário do que erroneamente já se pôde ler por aí.

O autor é ativista trans, havendo sido um dos proponentes do Manifesto Irradiativo, destinado à promoção da visibilidade das identidades não-mainstream étnicas, religiosas ou de gênero. Junte isso com sua formação inicial em oceanografia e posterior em artes plásticas, pensamento político mais puro tesão de quem então estava em seus 20 anos e obtemos um mosaico cinético de ações e referências explodindo de si mesmo por todo o livro.

E porque só se tem 20 anos uma vez, temos um dos meus dois contos favoritos do livro, por destoar de um discurso de ação espetaculosa de descrições ao usar o estranho para basear para uma história de cunho pessoal e de perda. Em O Jardim de Nenúfares Suspensos, a situação envolve a perda de alguém marcante ainda na fase universitária, daquela sensação de vida interrompida testemunhada bem antes do que "deveria ser", isto é, somente no devido tempo e idade de nossos avós: esperança revelada falsa, por motivo súbito e irracional, e a prontificação da saudade que muito provavelmente não irá embora... impressões que só aumentam com a narração em primeira pessoa.

Contemplafantasiação é um dos poucos escritos que li na vida que eu gostaria de ver animados. Não filmados: animados. Elementos e paletas diferentes voam, sucedem-se e se mesclam, em uma história trágica de um amor proibido, como são essas histórias. Tabus sociais e culturais impedem a felicidade das protagonistas de povos distintos, onde a homoafetividade do relacionamento é o de menos - não obstante uma oposição masculina, brutal e predominante.

Morgana Memphis contra a Irmandade Gravibramânica e Morgana Memphis Dividindo por Zero estrelam o mesmo par de personagens amorais, a citada Morgana Memphis e Amadahy, protagonistas de ação contra o excesso de desmandos do mundo em que se vive. O primeiro conto ganhou nos dias que passam uma pequena e perturbadora atualidade, com um populista de extrema direita no poder com vias de ser reeleito, além de religiões organizadas reacionárias que se acham detentoras de todos os motivos para oprimir o outro: sim, se as personagens são amorais como eu disse acima, podendo provocar a morte e acidente de passantes ocasionais sem sequer piscar o olho, quem elas enfrentam são coisas muito piores.

O outro, no caso, são uma população marginalizada de alienígenas assexuados que culturalmente adotaram para si a biologia mainstream, procurando se integrar e para isso buscando cirurgias de modificação corporal. Mas tudo o que conseguem é brutalidade e repulsa: "Grupos conservadores radicais, que havia pouco tempo habituarem-se a tolerar ciberorganiformes e animorfos, ficaram entusiasmados com o surgimento de uma nova identidade na praça e puseram-se imediatamente a protestar contra os novos translienígenas." (p. 91)

Mas isso é uma coisa em comum pelos mundos apresentados nos contos: a crueldade, extrapolação das injustiças do mundo real elevadas à enésima potência. Isso fica especialmente claro em Tupac Amarú III, onde o massacre do que seriam povos nativos andinos não encontra limites, macerando sua carne e espírito através de gerações, e Escolhidos ou deuses manifestados terão que cortar um dobrado para salvar ou vingar seu povo, com baixas chances de sucesso.

Tema recorrente é a cidade, a paisagem urbana, não apenas decadente mas futurista, arruinada porém não por isso menos viva e, se bobear, com intenções próprias. Do chão que absorve o sangue e o resto dos tombados para gerar energia para si a planos de fuga interdimensionais, a cidade está lá, um deus onipresente que se acostuma a não pensar nele, embora nos seja inescapável vê-lo ao nosso redor, a cidade tem seus próprios planos - e, à maneira dos deuses, planos insondáveis: em Uma Cidade Sonhando Seus Metais, a cidade é praticamente a personagem principal, ou assim pode ser lido. O tipo de conto que poderia facilmente constar na antologia Cidades Indizíveis (Llyr Editorial, 2011), por exemplo - e que, certamente, enriqueceria o livro.

O descaso pela vida do outro tornado mau hábito corriqueiro é fotografado especialmente nos contos envolvendo crianças. Como na vida real, são as que mais sofrem, nos escritos, não há porque ser diferente. Não há quem as salve, nem quem vele por elas. Suas vidas são breves, abandonadas e com fins violentos. Moleque é o conto que abre o livro, descrevendo dois irmãos separados por um oceano e unidas por tudo o que há contra sua existência. Uma delas ainda tem o conforto da companhia gentil de uma Iara, Mãe D'Água, porém em fim de carreira quando os mares e rios estão completamente poluídos. Mas é uma exceção.

Por último, Metanfetaedro, o conto que deu nome ao livro. Este foi reeditado na Fractais Tropicais (SESI-SP Editora, 2018), importante antologia coordenada por Nelson de Oliveira que caracteriza autores das ditas três diferentes ondas da ficção científica brasileira. Seu texto foi reescrito, em uma nova versão, no caso, beneficiando-se de um polimento. A história trata - se entendi - a respeito de bloqueio criativo, envolvendo ainda hipergeometria e drogas transcendentais - bem, metanfetaedro já está no título, afinal: e mais é tentar explicar o que deve ser curtido, sentido e viajado.

Espero que essa coletânea, algum dia, possa ser republicada, e que o autor possa ter o destaque que, definitivamente, merece.

Metanfetaedro
232 p
Tarja Editorial

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Mestres do Terror



A antologia Mestres do Terror está em financiamento coletivo. Será lançada pela Skript Editora, e tem à frente do projeto meu estimadíssimo Daniel Gárgula.




 A ideia é juntar os autores estrangeiros e mesmo nacionais em um só volume. A seleção de contos:  Os contos selecionados para a obra:

• O Convidado do Drácula
Bram Stoker

• O Estranho Caso do Sr. Valdemar
Edgar Allan Poe

• Dagon
H. P. Lovecraft

• O Corpo Roubado
H. G. Wells

• Transformação
Mary Shelley

• Os Porcos
Júlia Lopes de Almeida

• A Casa sem sono
Coelho Neto

• O Estranho
Ambrose Bierce

• Madrugada Negra
Viriato Corrêa

 Boa sorte com o projeto!

sábado, 1 de agosto de 2020

Expresso do Amanhã

Série Expresso do Amanhã estreará mais cedo que o esperado - POPSFERA
Snowpiercer: tecnologia futurista, calamidade presente, questões antigas.

Aviso: spoilers abaixo.

Le Transperceneige é uma obra que já alcançou mídias diferentes: as originais em quadrinhos, o filme com Chris Evans em 2013 e uma série nova na Netflix, agora em 2020. No Brasil, as três primeiras HQs (de 1982, 1999 e 2000) são encontradas em um só volume pela editora Aleph, O Perfuraneve. O quadrinho original foi criado por Jacques Lob (roteiro) e Jean-Marc Rochette (desenhos), e as demais publicações contaram com outros roteiristas.

O cenário é sobre quando o mundo entra em um período repentino de glaciação e os sobreviventes da Humanidade estão presos em uma composição de trem de mil vagões, rodando ano após anos por um circuito operacionais de linhas de trem. Não há para onde ir, apenas seguir. Todos lá fora morreram, as cidades são mausoléus brancos e congelados. O trem é uma maravilha da engenharia que, indica o nome, supera qualquer amontoamento de neve que bloqueie o circuito.

E a história é sobre como, dentro do trem, acontece uma representação da luta de classes, entre muitos que têm pouco e poucos que têm muito - e que nem no fim do mundo isso, dado a chance, mudará.

A ideia de sobreviventes da Humanidade em um último veículo selado contra o meio ambiente hostil não é nova, mas é sempre bom ver o que um novo take tem a acrescentar. A FC oferece, via de regra, naves gigantes, ditas geracionais, levando séculos e séculos em sua viagem por um lar às vezes cada vez mais mítico, até mesmo com seus habitantes se esquecendo de suas origens e mesmo sua missão. Na série original de Jornada nas Estrelas temos For the World is Hollow and I have Touched the Sky (3x08), já em The Orville a premissa é vista em If the Stars Should Appear (1x04). Uma disparidade de classes a bordo do veículo selado pode ser sugerida na frota de naves sobreviventes à mercê dos cylons na série Galactica original, assim como com o remake de 2004; e mais recentemente na espaçonave Órion vista na minisérie Ascension (2014), projeto este que infelizmente apenas ficou na mini-série.

Há mais tantos outros exemplos, independente da mídia, mas a vantagem básica, ao meu ver, é contar uma distopia social a bordo de um trem, que por mais futurista que possa ser concebido, é algo mais facilmente reconhecível pela audiência, alcançando assim mais gente - mesmo que questões sobre como linhas de trem continuariam funcionais sem manutenção (não é somente a respeito da locomotiva e da composição) tenham ficado em aberto.

A estrutura básica do trem se dá com os últimos vagões preenchido pelos pobres, em péssimas condições, que a medida que se avança pela composição até a locomotiva o nível de vida melhora consideravelmente: de comida a água encanada até algo que em geral não pensamos e damos por garantido, como espaço livre.


O Perfuraneve (2015), editora Aleph.

A primeira história em quadrinhos - a edição da Aleph traz as três primeiras histórias em um só volume. A primeira história apresenta a ideia e a ambientação. Um passageiro dos vagões dos fundos almeja avançar até a locomotiva. A diferença de classes aqui existe, mas a subversão não é o mote em si, ainda que a história, entretanto, mais foque em reações humanas quando o tema é 'farinha pouca, meu pirão primeiro': a "burguesa consciente" querendo ajudar o revolucionário que de revolucionário não tem exatamente algo é comovente. E em tempos de pandemia, a ideia de contágio aqui presente, devido às péssimas condições dos últimos vagões, tem um incômodo senso de atualidade.

Os enquadramentos privilegiam, como não pode deixar de ser, closes e ambientes fechados. Na primeira HQ, salvo a locomotiva, o trem tem um aspecto normal, por mais que a arte no geral privilegie os expressivos rostos dos personagens, pelo belo traço de Jean-Marc Rochette.

John Hurt, Chris Evans, and Tilda Swinton in Snowpiercer (2013)
O Expresso do Amanhã, 2013

O filme, dentro dos limites de tempo da exibição, apresenta uma situação de revolução iminente, com os desfavorecidos dos últimos vagões preparando-se para mais uma tentativa. Quinze anos já decorreram desde a partida do trem.

Além da adaptação entre formatos, há uma adaptação da história, mais se firmando nos elementos base presentes nos quadrinhos do que investindo em uma tradução entre mídias diferentes: mas o protagonista que anseia em alcançar a locomotiva, o coração e controle daquele mundo e por tabela das condições em que ele vivia, está lá.

É um retrato pouco sutil das questões de classe, com evocações até quando crianças eram utilizadas nas fábricas da Revolução Industrial para ocuparem espaços apertados e mexerem em maquinário perigoso, sem a menor proteção. Crianças pobres (e pretas, por tabela), esclarecido isto: enquanto crianças dos passageiros que pagaram melhores passagens tinham educação garantida de forma também a perpetuar uma mentalidade de descaso contra os menos favorecidos e apreciar a ordem, o status quo.

Chris Evans está bom como sempre, com o personagem finalmente desmoronando sob a confissão de seus pecados, próximo ao final. Ed Harris como uma espécie de Mágico de Oz/Grande Irmão orwelliano, o mítico e onipresente porém nunca visto Wilford, responsável pela criação do trem e do destino de todos a bordo. O elenco conta ainda com Octavia SpencerJohn HurtKang-ho Song (de Parasita) e, em um papel adoravelmente detestável, Tilda Swinton. Dirigido por Bong Joon Ho, também de Parasita, que aliás assina como escritor na nova série.

Snowpiercer: Season 1 – Review | Netflix / TNT Sci-Fi | Heaven of ...
Uma questão de lados.

A série dá a impressão de ser na mesma continuidade do trem, verificável por detalhes como o logotipo das Indústrias Wilson e a citação do elemento CW7 utilizado para o resfriamento global, assim como o problema com a droga koron - mas é um desenvolvimento próprio. Passa-se aproximadamente sete anos após a partida, e o esfriamento glacial se dá como explicado no filme, com o adendo de uma guerra havendo esquentado ainda mais o planeta, e a emenda saindo pior que o soneto.

Sendo um ambiente selado, o meio-ambiente precisa ser mantido em equilíbrio, para que não haja escassez: mas quando um assassinato ocorre, a elite do trem sente que o meio ambiente social pode estar em perigo. Entra em cena um dos protagonistas, um dos sobreviventes do fundo do trem, que antes do fim do mundo era detetive de homicídios - o único detetive a bordo. Com esse mote, o funcionamento social da composição vai sendo apresentado, com personagens por vezes envolvidos em segredos sórdidos.

Os passageiros se dividem em quatro classes, de acordo com o preço da passagem que compraram, ganhando vagões e opções de lazer cada vez menores: a primeira classe, a segunda e a terceira - e aí tem os tailers, os do fundo do trem, que forçaram sua entrada quando o desastre se abateu no planeta. Desde então, vêm sendo tratados como incômodo para o resto da ordem social: há que se alimentá-los de alguma forma, para prevenir tumultos como no passado. E mesmo a ideia cruel de apenas desatrelar os últimos vagões para se livrarem deles é vista com o receio por uma revolta na terceira classe, se isso acontecer.

No formato de série, o mundo pode aqui ser bem mais detalhado do que no filme, como a situação da tensão social a bordo. Mais do que pano de fundo, ela é parte da motivação dos personagens, entre a manutenção do status quo, sua derrubada e aquilo que se faz para se viver melhor.

O diretor aposta no momento atual, e não se enganem: esta também é uma obra tão política quanto Parasita, já citado. Não é à toa que o personagem principal é um negro, que não raro é espancado por seguranças fardados e blindados. Os dias em que começo a escrever essa resenha se sucedem ao do assassinato cruel de George Floyd nos EUA por um policial branco, e os violentos protestos que se seguiram.

Como na vida real com o S. S. Titanic, não há escaleres para todos, especialmente para as classes mais baixas.

Com dez episódios, a série termina em um belo gancho para a 2a temporada, ainda que tenha me parecido meio tirado da cartola. Mas o resultado, no cômputo geral, é bom e eu recomendo.