Purgatório da beleza e do caos: Silicone XXI, de Alfredo Sirkis (Record, 1985)
A morte recente de Alfredo Sirkis (1950-2020), político e ativista ambiental, acabou me fazendo finalmente ler seu único romance no campo da ficção científica, lançado em 1985 e situado em um Rio de Janeiro no distante ano de 2019.
A obra é claramente influenciada por Blade Runner: o Caçador de Androides (1982), com uma investigação policial, androides para fins sexuais, arranha-céus e carros aéreos, mas estes elementos levam à criação de um "romance policial futurista", consta na capa da frente ("seu primeiro roman noir", conforme informação da quarta capa): em vez de se tornar apenas uma cópia, afasta-se da referência original e traz questões próprias nossas.
E como bom noir, uma investigação policial encontra em seu caminho uma conspiração de alcance apocalíptico e nacional, no caso. Personagens no escuro, nem sempre as peças se encaixam a princípio, uma galeria de tipos singulares: Sirkis talvez - talvez - aqui tenha problemas de timing de apresentação e caracterização dos personagens. Pareceu-me que alguns personagens mais saem da cartola do que são realmente apresentados. Tive a impressão, ainda, que só pela metade do livro que a história, de fato, engrena - e engrena bem.
Costumo dizer que ficção científica envelhece rápido e envelhece mal, e aqui não é exceção. Claro, toda obra e autor são frutos de seu tempo, e talvez seja por isso que a FC padeça em especial por causa disso: suas extrapolações - conceituais ou tecnológicas - são calcadas no que o autor tem ao seu redor, entre a vivência cotidiana e hipóteses científicas de então.
Mas Silicone XXI é engraçado: há aquilo que envelheceu, há aquilo que se manteve atual e há aquilo inesperadamente atual. A saber:
Naquele futuro eletrônico sem ser digital; este Rio de 2019 não chegou nem perto de ocorrer, assim como aquela Los Angeles de 2017. Mas é mais do que armas laser, robôs, androides sexuais e aerocarros que, até aqui, nunca existiram, convivendo com a VARIG e micro-disquetes de computador que, se existiram, já se foram há tempos: há uma malandragem carioca como é descrita e escrita que nos faz pensar em algum filme de Hugo Carvana, entre os ditos tipos cariocas e seus diálogos... eu não sei se ainda valeria.
O clima noir não parece resistir muito ao otimismo do ideário do autor: o Rio retratado dispõe de metrô, monotrilho, calçadas rolantes e aerotransporte: para travessias sossegadas mais longas, dirigíveis a hélio. Na Avenida Rio Branco há um calçadão volante, o Centro é uma parte preservada em que não há mais novas construções. O Brasil é um regime parlamentarista onde predomina a coalizão entre sociais democratas e verdes. O Programa Nuclear Brasileiro - grande questão de época - foi desativado por plebiscito em 2005, e comunidades alternativas longe dos grandes centros urbanos prosperam, social e economicamente, mantendo autonomia graças à energia solar, e uma própria diversidade ideológica e religiosa, quando aplicado, em respeito umas com as outras.
As preocupações de Sirkis com o meio ambiente não podiam deixar de estar presentes: o início do livro se dá no Olympus Aerotel, uma edificação encravada no meio do Morro Dois Irmãos, cartão postal da zona sul do Rio de Janeiro e, desde 1992, reserva ambiental. O cenário evoca um certo espanto tanto pelo conceito arrojado de um prédio localizado em tal localidade, acessível somente por aeronaves; quanto pelo desplante facilmente acreditável por estar nesse lugar: dá a impressão que o Rio de Janeiro é uma cidade em que leis de urbanismo, paisagismo e preservação ambiental parecem apenas prorrogar o que é inevitável na melhor das hipóteses, e na pior delas ser apenas outro nome para "taxa de suborno".
Tais preocupações talvez sejam a única coisa sem realmente envelhecer de 1985 para cá, infelizmente.
Mas quem poderia se opor a tudo isso, senão elementos reacionários de contornos positivistas, assim como oriundos de radicais das Forças Armadas - no texto, cabe salientar, perfeitamente ajustadas na atual sociedade - que, bêbados na crença de seus delírios e discursos grandiloquentes, vale tudo para impedir o avanço do socialismo e homossexualização programada, até mesmo um atentado à adutora do Guandu: extremismo confesso e desavergonhado que, divulgado pela mídia interessada em ibope, ganha imenso apoio popular...
... familiar?
Em outra inesperada atualidade, um alvo das forças reacionárias é a "comunidade andrógina", abordando a questão atual de pessoas transgêneras e a transfobia, encontrando apoio de parte da sociedade a este discurso doentio.
Concluindo: Silicone XXI é um bom registro de época, abordando questões de então e projeções dentro do credo do autor, com erros que nos fazem sorrir, e acertos nos fazem refletir e mesmo nos preocupar. É, também, uma aventura policial, e pode - e deve - ser lido desta maneira, para quando se preferir. Aliás, na batida de ser uma obra pop, a edição providencia capa e ilustrações de miolo seguindo a estética dos quadrinhos sendo feitas por Al Voss, artista franco-alemão que morou no Brasil, projetou capas para os Mutantes e chegou a trabalhar para a Métal Hurlant, sendo conhecedor da linguagem das HQs: o aerógrafo de capa envelheceu mal particularmente bem.
Silicone XXI
200 p.
Editora Record