sábado, 15 de agosto de 2020

Metanfetaedro



Metanfetaedro – Ficção Científica Brasileira
Vizinhanças do estranho: Metanfetaedro, de Vic Vieira/Alliah (Tarja Editorial, 2012)

Metanfetaedro é uma coletânea de Vic Vieira, então assinando como Alliah. Saiu pela extinta editora Tarja, dedicada à publicação de literatura fantástica. O livro tem oito contos independentes, dois deles interligados no sentido de terem as mesmas protagonistas. Acompanham os contos ilustrações de capa e miolo de sua própria autoria.

Os escritos se propõem a seguir a corrente do New Weird, tornando-se até então uma das poucas publicações assim aqui no Brasil.

Pessoalmente, eu tenho a impressão que, do New Weird, há a tentação de cair em um rococó de adjetivos e nonsense que pode facilmente suplantar a própria história sendo contada: o que, conforme se apresenta, não é o caso aqui. Eu e Gerson Lodi-Ribeiro chegamos a receber um conto do autor em 2012 para a antologia que coordenamos, Super-Heróis (Draco, 2013), mas que infelizmente não pudemos aproveitar, e era completamente da mesma safra.

A Tarja, aliás, publicou obras dentro do subgênero até então inéditas no Brasil, como Alquimia da Pedra, de Ekaterina Sedia e a primeira tradução de China Miéville no Brasil de Rei Rato, ao contrário do que erroneamente já se pôde ler por aí.

O autor é ativista trans, havendo sido um dos proponentes do Manifesto Irradiativo, destinado à promoção da visibilidade das identidades não-mainstream étnicas, religiosas ou de gênero. Junte isso com sua formação inicial em oceanografia e posterior em artes plásticas, pensamento político mais puro tesão de quem então estava em seus 20 anos e obtemos um mosaico cinético de ações e referências explodindo de si mesmo por todo o livro.

E porque só se tem 20 anos uma vez, temos um dos meus dois contos favoritos do livro, por destoar de um discurso de ação espetaculosa de descrições ao usar o estranho para basear para uma história de cunho pessoal e de perda. Em O Jardim de Nenúfares Suspensos, a situação envolve a perda de alguém marcante ainda na fase universitária, daquela sensação de vida interrompida testemunhada bem antes do que "deveria ser", isto é, somente no devido tempo e idade de nossos avós: esperança revelada falsa, por motivo súbito e irracional, e a prontificação da saudade que muito provavelmente não irá embora... impressões que só aumentam com a narração em primeira pessoa.

Contemplafantasiação é um dos poucos escritos que li na vida que eu gostaria de ver animados. Não filmados: animados. Elementos e paletas diferentes voam, sucedem-se e se mesclam, em uma história trágica de um amor proibido, como são essas histórias. Tabus sociais e culturais impedem a felicidade das protagonistas de povos distintos, onde a homoafetividade do relacionamento é o de menos - não obstante uma oposição masculina, brutal e predominante.

Morgana Memphis contra a Irmandade Gravibramânica e Morgana Memphis Dividindo por Zero estrelam o mesmo par de personagens amorais, a citada Morgana Memphis e Amadahy, protagonistas de ação contra o excesso de desmandos do mundo em que se vive. O primeiro conto ganhou nos dias que passam uma pequena e perturbadora atualidade, com um populista de extrema direita no poder com vias de ser reeleito, além de religiões organizadas reacionárias que se acham detentoras de todos os motivos para oprimir o outro: sim, se as personagens são amorais como eu disse acima, podendo provocar a morte e acidente de passantes ocasionais sem sequer piscar o olho, quem elas enfrentam são coisas muito piores.

O outro, no caso, são uma população marginalizada de alienígenas assexuados que culturalmente adotaram para si a biologia mainstream, procurando se integrar e para isso buscando cirurgias de modificação corporal. Mas tudo o que conseguem é brutalidade e repulsa: "Grupos conservadores radicais, que havia pouco tempo habituarem-se a tolerar ciberorganiformes e animorfos, ficaram entusiasmados com o surgimento de uma nova identidade na praça e puseram-se imediatamente a protestar contra os novos translienígenas." (p. 91)

Mas isso é uma coisa em comum pelos mundos apresentados nos contos: a crueldade, extrapolação das injustiças do mundo real elevadas à enésima potência. Isso fica especialmente claro em Tupac Amarú III, onde o massacre do que seriam povos nativos andinos não encontra limites, macerando sua carne e espírito através de gerações, e Escolhidos ou deuses manifestados terão que cortar um dobrado para salvar ou vingar seu povo, com baixas chances de sucesso.

Tema recorrente é a cidade, a paisagem urbana, não apenas decadente mas futurista, arruinada porém não por isso menos viva e, se bobear, com intenções próprias. Do chão que absorve o sangue e o resto dos tombados para gerar energia para si a planos de fuga interdimensionais, a cidade está lá, um deus onipresente que se acostuma a não pensar nele, embora nos seja inescapável vê-lo ao nosso redor, a cidade tem seus próprios planos - e, à maneira dos deuses, planos insondáveis: em Uma Cidade Sonhando Seus Metais, a cidade é praticamente a personagem principal, ou assim pode ser lido. O tipo de conto que poderia facilmente constar na antologia Cidades Indizíveis (Llyr Editorial, 2011), por exemplo - e que, certamente, enriqueceria o livro.

O descaso pela vida do outro tornado mau hábito corriqueiro é fotografado especialmente nos contos envolvendo crianças. Como na vida real, são as que mais sofrem, nos escritos, não há porque ser diferente. Não há quem as salve, nem quem vele por elas. Suas vidas são breves, abandonadas e com fins violentos. Moleque é o conto que abre o livro, descrevendo dois irmãos separados por um oceano e unidas por tudo o que há contra sua existência. Uma delas ainda tem o conforto da companhia gentil de uma Iara, Mãe D'Água, porém em fim de carreira quando os mares e rios estão completamente poluídos. Mas é uma exceção.

Por último, Metanfetaedro, o conto que deu nome ao livro. Este foi reeditado na Fractais Tropicais (SESI-SP Editora, 2018), importante antologia coordenada por Nelson de Oliveira que caracteriza autores das ditas três diferentes ondas da ficção científica brasileira. Seu texto foi reescrito, em uma nova versão, no caso, beneficiando-se de um polimento. A história trata - se entendi - a respeito de bloqueio criativo, envolvendo ainda hipergeometria e drogas transcendentais - bem, metanfetaedro já está no título, afinal: e mais é tentar explicar o que deve ser curtido, sentido e viajado.

Espero que essa coletânea, algum dia, possa ser republicada, e que o autor possa ter o destaque que, definitivamente, merece.

Metanfetaedro
232 p
Tarja Editorial

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