sábado, 1 de agosto de 2020

Expresso do Amanhã

Série Expresso do Amanhã estreará mais cedo que o esperado - POPSFERA
Snowpiercer: tecnologia futurista, calamidade presente, questões antigas.

Aviso: spoilers abaixo.

Le Transperceneige é uma obra que já alcançou mídias diferentes: as originais em quadrinhos, o filme com Chris Evans em 2013 e uma série nova na Netflix, agora em 2020. No Brasil, as três primeiras HQs (de 1982, 1999 e 2000) são encontradas em um só volume pela editora Aleph, O Perfuraneve. O quadrinho original foi criado por Jacques Lob (roteiro) e Jean-Marc Rochette (desenhos), e as demais publicações contaram com outros roteiristas.

O cenário é sobre quando o mundo entra em um período repentino de glaciação e os sobreviventes da Humanidade estão presos em uma composição de trem de mil vagões, rodando ano após anos por um circuito operacionais de linhas de trem. Não há para onde ir, apenas seguir. Todos lá fora morreram, as cidades são mausoléus brancos e congelados. O trem é uma maravilha da engenharia que, indica o nome, supera qualquer amontoamento de neve que bloqueie o circuito.

E a história é sobre como, dentro do trem, acontece uma representação da luta de classes, entre muitos que têm pouco e poucos que têm muito - e que nem no fim do mundo isso, dado a chance, mudará.

A ideia de sobreviventes da Humanidade em um último veículo selado contra o meio ambiente hostil não é nova, mas é sempre bom ver o que um novo take tem a acrescentar. A FC oferece, via de regra, naves gigantes, ditas geracionais, levando séculos e séculos em sua viagem por um lar às vezes cada vez mais mítico, até mesmo com seus habitantes se esquecendo de suas origens e mesmo sua missão. Na série original de Jornada nas Estrelas temos For the World is Hollow and I have Touched the Sky (3x08), já em The Orville a premissa é vista em If the Stars Should Appear (1x04). Uma disparidade de classes a bordo do veículo selado pode ser sugerida na frota de naves sobreviventes à mercê dos cylons na série Galactica original, assim como com o remake de 2004; e mais recentemente na espaçonave Órion vista na minisérie Ascension (2014), projeto este que infelizmente apenas ficou na mini-série.

Há mais tantos outros exemplos, independente da mídia, mas a vantagem básica, ao meu ver, é contar uma distopia social a bordo de um trem, que por mais futurista que possa ser concebido, é algo mais facilmente reconhecível pela audiência, alcançando assim mais gente - mesmo que questões sobre como linhas de trem continuariam funcionais sem manutenção (não é somente a respeito da locomotiva e da composição) tenham ficado em aberto.

A estrutura básica do trem se dá com os últimos vagões preenchido pelos pobres, em péssimas condições, que a medida que se avança pela composição até a locomotiva o nível de vida melhora consideravelmente: de comida a água encanada até algo que em geral não pensamos e damos por garantido, como espaço livre.


O Perfuraneve (2015), editora Aleph.

A primeira história em quadrinhos - a edição da Aleph traz as três primeiras histórias em um só volume. A primeira história apresenta a ideia e a ambientação. Um passageiro dos vagões dos fundos almeja avançar até a locomotiva. A diferença de classes aqui existe, mas a subversão não é o mote em si, ainda que a história, entretanto, mais foque em reações humanas quando o tema é 'farinha pouca, meu pirão primeiro': a "burguesa consciente" querendo ajudar o revolucionário que de revolucionário não tem exatamente algo é comovente. E em tempos de pandemia, a ideia de contágio aqui presente, devido às péssimas condições dos últimos vagões, tem um incômodo senso de atualidade.

Os enquadramentos privilegiam, como não pode deixar de ser, closes e ambientes fechados. Na primeira HQ, salvo a locomotiva, o trem tem um aspecto normal, por mais que a arte no geral privilegie os expressivos rostos dos personagens, pelo belo traço de Jean-Marc Rochette.

John Hurt, Chris Evans, and Tilda Swinton in Snowpiercer (2013)
O Expresso do Amanhã, 2013

O filme, dentro dos limites de tempo da exibição, apresenta uma situação de revolução iminente, com os desfavorecidos dos últimos vagões preparando-se para mais uma tentativa. Quinze anos já decorreram desde a partida do trem.

Além da adaptação entre formatos, há uma adaptação da história, mais se firmando nos elementos base presentes nos quadrinhos do que investindo em uma tradução entre mídias diferentes: mas o protagonista que anseia em alcançar a locomotiva, o coração e controle daquele mundo e por tabela das condições em que ele vivia, está lá.

É um retrato pouco sutil das questões de classe, com evocações até quando crianças eram utilizadas nas fábricas da Revolução Industrial para ocuparem espaços apertados e mexerem em maquinário perigoso, sem a menor proteção. Crianças pobres (e pretas, por tabela), esclarecido isto: enquanto crianças dos passageiros que pagaram melhores passagens tinham educação garantida de forma também a perpetuar uma mentalidade de descaso contra os menos favorecidos e apreciar a ordem, o status quo.

Chris Evans está bom como sempre, com o personagem finalmente desmoronando sob a confissão de seus pecados, próximo ao final. Ed Harris como uma espécie de Mágico de Oz/Grande Irmão orwelliano, o mítico e onipresente porém nunca visto Wilford, responsável pela criação do trem e do destino de todos a bordo. O elenco conta ainda com Octavia SpencerJohn HurtKang-ho Song (de Parasita) e, em um papel adoravelmente detestável, Tilda Swinton. Dirigido por Bong Joon Ho, também de Parasita, que aliás assina como escritor na nova série.

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Uma questão de lados.

A série dá a impressão de ser na mesma continuidade do trem, verificável por detalhes como o logotipo das Indústrias Wilson e a citação do elemento CW7 utilizado para o resfriamento global, assim como o problema com a droga koron - mas é um desenvolvimento próprio. Passa-se aproximadamente sete anos após a partida, e o esfriamento glacial se dá como explicado no filme, com o adendo de uma guerra havendo esquentado ainda mais o planeta, e a emenda saindo pior que o soneto.

Sendo um ambiente selado, o meio-ambiente precisa ser mantido em equilíbrio, para que não haja escassez: mas quando um assassinato ocorre, a elite do trem sente que o meio ambiente social pode estar em perigo. Entra em cena um dos protagonistas, um dos sobreviventes do fundo do trem, que antes do fim do mundo era detetive de homicídios - o único detetive a bordo. Com esse mote, o funcionamento social da composição vai sendo apresentado, com personagens por vezes envolvidos em segredos sórdidos.

Os passageiros se dividem em quatro classes, de acordo com o preço da passagem que compraram, ganhando vagões e opções de lazer cada vez menores: a primeira classe, a segunda e a terceira - e aí tem os tailers, os do fundo do trem, que forçaram sua entrada quando o desastre se abateu no planeta. Desde então, vêm sendo tratados como incômodo para o resto da ordem social: há que se alimentá-los de alguma forma, para prevenir tumultos como no passado. E mesmo a ideia cruel de apenas desatrelar os últimos vagões para se livrarem deles é vista com o receio por uma revolta na terceira classe, se isso acontecer.

No formato de série, o mundo pode aqui ser bem mais detalhado do que no filme, como a situação da tensão social a bordo. Mais do que pano de fundo, ela é parte da motivação dos personagens, entre a manutenção do status quo, sua derrubada e aquilo que se faz para se viver melhor.

O diretor aposta no momento atual, e não se enganem: esta também é uma obra tão política quanto Parasita, já citado. Não é à toa que o personagem principal é um negro, que não raro é espancado por seguranças fardados e blindados. Os dias em que começo a escrever essa resenha se sucedem ao do assassinato cruel de George Floyd nos EUA por um policial branco, e os violentos protestos que se seguiram.

Como na vida real com o S. S. Titanic, não há escaleres para todos, especialmente para as classes mais baixas.

Com dez episódios, a série termina em um belo gancho para a 2a temporada, ainda que tenha me parecido meio tirado da cartola. Mas o resultado, no cômputo geral, é bom e eu recomendo.

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