terça-feira, 27 de junho de 2023

O Auto da Maga Josefa

 

O Auto da Maga Josefa (2018). Editora Gutenberg.

O Auto da Maga Josefa é um romance fix-up por Paola Siviero*, ganhador dos Prêmios LeBlanc e Odisseia (Fantasia), e ainda finalista do Argos. Por mais que as premiações de literatura fantástica sejam recentes esse placar ainda não foi igualado por outro romance (do mesmo ano, só a antologia Fractais Tropicais, organizada por Nelson de Oliveira, ganhou dois prêmios em sua categoria, o LeBlanc e o Argos). Se só por isso já significa alguma coisa, ao mesmo tempo é um breve jus ao mérito demonstrado.

É um romance de fantasia, tendo como base folclore nacional, seja um tradicional, seja o contemporâneo, havendo espaço para alienígenas e chupacabras. E, na ausência de divindades intermediárias entre os polos absolutos, Deus e o diabo são tratados com relativa intimidade, como também vemos no folclore e na literatura de cordel. Respeitando esta base, temos ilustrações ao estilo, que abrem cada capítulo.

As histórias se passam no interior do Nordeste no início dos 1960s, ainda que a ruralidade do ambiente possa sugerir períodos anteriores. O Açude de Orós (1961), presente em uma das histórias, é mostrado como novidade. Mas de resto, o que se espera de cidades pequenas em meio à habitual seca compõem a maioria dos cenários pelos capítulos. 

Kenshin/Samurai X se não uma referência, uma boa lembrança.

Esse Brasil mágico, rural, que se cria à margem do Brasil que se industrializa, especialmente pós-Vargas, me faz lembrar de duas referências: tanto Samurai X, o anime, em que durante a Era Meiji (a industrialização japonesa à ocidental) o Japão medieval e mitológico, representado pelas bruxas, demônios e criaturas sobrenaturais é posto contra os corners do ringue pela modernização do país - mas deixam claro que não irão sem luta -; quanto a da obra do cineasta brasileiro, pré-Cinema Novo, Nelson de Oliveira, pai de uma proposta de gênero que infelizmente nunca emplacou, o Nordestern, e que alia o mágico com o Brasil rural e às vezes urbano por volta dos anos 60-70.

Por trás dos capítulos-episódios, há duas motivações simples: Toninho é um caçador de monstros sobrenaturais, filho de caçadores, e levar o legado da família adiante lhe basta. Como entrega o título, Josefa é uma maga, o que significa que sua alma está prometida ao diabo, em troca de poder: será que ela consegue escapar desta situação?

Na medida em que as histórias se passam, os personagens crescem, assim como se atenua sua difícil relação a princípio - nada de enemies to lovers, entretanto, o que é bom (com o perdão de quem se amarra em soluções assim).

Um auto, literariamente falando, originalmente é uma peça teatral curta, um só ato dedicado a alguma lição de moral, sátira ou outra mensagem (explicação bacana aqui), caracterizando-se por uma linguagem fácil. O livro apresenta essa prosa ágil, onde a leitura desliza, gostosa, por episódios curtos em um resultado que eu não canso de recomendar. Gostaria de ver mais, bem mais.

E tome de andanças...!

Por último, me dei à pachorra de ver o percurso dos personagens no google maps :) Ou, pelo menos, cidades próximas de onde a ação é citada.

* Aliás, quase publicando esses pitacos, foi anunciada a capa do próximo romance da autora no twitter, confiram!

O Auto da Maga Josefa
221 p.
Gutenberg

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Operação Resgate feelings...

(originalmente pus isto no twitter...)

Pura nostalgia. O início dum episódio com a abertura aqui.

Sob o risco de nos tornarmos a nação de agora 200 milhões de engenheiros navais; a ideia do submarino feito no easy mode lembra muito uma série nozoitenta chamada Operação Resgate, em que um sucateiro monta uma nave espacial pra ir à Lua. Puro suco de sonho americano, e com o devido perdão à criança que eu era, é dos casos que ficção científica envelhece mal (isso, quando não envelhece rápido), embora no quesito 'a opinião do zé mané vale tanto quanto a do especialista', a atualidade de Avenue 5 seja matadora - conforme aliás em post do outro dia.

Ah, esses sucateiros americanos incorrigíveis... 

Dentro dos meus achismos e pitacos; me parece que há uma espécie de linha de código de pensamento e comportamento ao longo aí duns 3000 anos  que permeia o pensamento ocidental, que vem da Grécia Antiga e é salientado hj em dia no pós-calvinismo neoliberal do self-made fucker.

Zilionários sendo, claro, o epítome (gostaram?) desse pensamento: Deus gosta de você por você ter/fazer dinheiro (Calvinismo em resumo), todos querem ter pelo menos um pouco da boa vida que têm (protagonismo no imaginário) e eles têm a faca e o queijo na mão para deixar sua marca na posteridade (gregos antigos) - nem que seja a da tragédia (gregos antigos again), como no caso. 

Mas noção de que eles também sejam fruto de um contexto maior e ameaçadoramente anonimalizante, ninguém quer nem ouvir: há mais de um tipo de vencedor para contar a História, afinal. Ninguém liga para as massas. É das massas que queremos, nós, os pós-gregos, nos excluir e destacar. E quanto a números...

Não há rostos discerníveis em meio à massa, mesmo na tragédia.

... a tendência é que eles anestesiem.



sábado, 17 de junho de 2023

Para uma Cinematografia do Retardo das Massas, ou: o Apocalipse Cognitivo será Televisionado

 Comecei essa postagem em 2021, logo após ter assistido Não Olhe para Cima, e vi que já havia exemplares que justificavam uma comparação. Mas acabei me esquecendo de concluir, e meio que perdi o timing do lançamento do filme. A situação política - ainda bem - minimamente voltou a um QI positivo (espero), mas... fica pelo registro. 

Dependendo, posso vir a adicionar mais entradas aqui, a futuro.

***

Don't Look Up - Altas Aventuras de Impacto Profundo no Armageddon.

Não Olhe para Cima (Netflix, 2021), quase encerrando o ano, enquanto começo a digitar este texto, conseguiu chamar a atenção nos dias que passam, por suas provocações, elenco estelar, e - como vem andando o mundo - pela capacidade de polarizar entre quem o ama e quem o odeia - note-se ainda, surpreendentemente, que a orientação ideológica ou partidária não é garantia deste posicionamento, ainda que certas carapuças certamente estejam descendo até os tornozelos. E não é à toa.

Quando começou a ser planejado, a ideia era contrastar o negacionismo científico a respeito da mudança do clima - longa e gradativa - com a da vinda de um cometa em curso de colisão com a Terra dentro de seis meses, em um evento resultante similar ao da extinção dos dinossauros, obliterando o ecossistema. Porém, ao longo da produção, veio a pandemia, e a ideia serviu para ambos os casos: na verdade, serve para qualquer caso onde os fatos e suas averiguações científicas - já incluído a verificação por outros cientistas - são tratados com o mesmo peso e descaso da opinião tanto do zé mané da esquina quanto da conveniência política do demagogo eleito da vez e interesse financeiro de uma elite econômica predatória.

A administração Trump (destaque para Meryl Streep), com seus tipos vulgares, obcecados por imagem na mídia e, pior de tudo: completamente inadequados para qualquer cargo que ocupavam; além da submissão aos interesses que financiaram suas campanhas eleitorais, fora campanhas sujas envolvendo fake news e factoides sempre que uma nova inconveniência surgia. Nova prova de universalidade do filme, pois tudo isso poderia ser um retrato dos EUA hoje em dia, não fosse a terrível sensação de familiaridade muito, mas muito mais próxima de nós aqui, no Brasil.

Ao mesmo tempo, lembram quando filme-de-meteoro (MeteoroImpacto ProfundoArmageddon) implicava em governos e sociedade sossegarem o facho e trabalharem juntos em um esforço focado para se livrar da ameaça de aniquilação total? Pois é: esqueçam. Agora que aquelas peculiares teorias da conspiração viraram mainstream (imagino que, inclusive, graças à 'aceitação e normalização' da figura do nerd, que também virou um mercado cobiçado), tudo é relativizável, todas as opiniões passaram a ter o peso de estudos feitos e revistos por especialistas. 

E aquilo que desagrade é simplesmente desconsiderado - assim como cientistas despedidos por não concordarem com a 'linha do Partido', ou melhor, a 'linha da Companhia', contestando a forma que a já citada elite empresarial resolveu que queria lucrar. Em geral no papel da Cassandra do mito grego em filmes assim, o cientista agora não somente ninguém dá bola, mas também é ameaçado no emprego.

No filme, essa elite, incorporada na figura de um 'Elon Jobs' da vida, é tão predatória que dado momento decide sacrificar uma missão que poderia potencialmente salvar o mundo após descobrir que o astro se aproximando contém trilhões de dólares em metais comercialmente estratégicos, lançando uma segunda missão que fragmentaria o cometa mas não o destruiria: pondo ainda assim em risco a vida sobre a Terra. 

Tal decisão entra no mecanismo de polarização da sociedade, com pessoas dispostas a arriscar tudo porque 'o cometa gerará empregos'. 

Mas não é a primeira vez em que crítica ácida em comédia às custas do que é o próprio público médio - ei, claaaro que não a você, mas aos outros, aos outros... - é feita.

Space Force (Netflix, 2020) tem semelhanças com Não Olhe Para Cima, havendo se iniciado durante o governo Trump, contra o qual não faltam farpas, em termos de irracionalidade e jequice apresentadas. Para a segunda temporada (2022), havendo mudado a administração americana para algo minimamente racional, talvez exatamente por isso certo tom de crítica arrefeceu, e a série se tornou mais um programa sobre colegas disfuncionais de trabalho que acabam tendo uns nos outros uma espécie de família: meio que um The Office orientado ao espaço, não à toa com o mesmo Steve Carell,  Um ótimo preço a ser pago, tudo considerado...

Avenue 5 (Amazon, 2020) coloca a opinião do zé mané, especialmente a do zé mané com dinheiro, no real valor que ela tem, quando o assunto é ciência. O Avenue 5 do título é o nome de uma nave espacial de turismo, dando uma volta interplanetária em nosso sistema solar, e que acaba ficando sem controle. O reduzido staff técnico do cruzeiro tem que lidar com o "bom senso" prevalecente de bordo, dos passageiros e do patrão, que difere da maioria apenas por ter mais dinheiro - de saída, o atraso entre as comunicações nave-Terra devido à enorme distância lhe é um incômodo, não resolvido apenas porque ninguém está sendo criativo ou propositivo o suficiente. O episódio 8 é particularmente enervante, em que por votação querem abandonar a nave, apostando que nunca saíram da Terra.

Idiocracy (2006) talvez seja o marco moderno dessa cinematografia, tendo um olho na sociedade contemporânea de consumo, da época da Internet. Do mesmo Mike Judge que nos deu O Rei do Pedaço e, claro, Beavis e Butthead (1993-2011), com seu olho para a mediocridade humana fez de Idiocracy um filme tido como de, desnecessariamente exagerado em sua época a, simplesmente, profético. Meu medo é que, nesse ritmo, algum dia passe a ser desatualizado e mesmo otimista. Mas, que a cafonice de mau gosto da presidência Camacho e sua associação com a mídia e cultura pop lembram os tempos obsessivos com o assunto de Trump e, por tabela, a da presidenta Orlean: sem dúvida. 


Com a palavra, o excelentíssimo senhor presidente Dwayne Elizondo Mountain Dew Herbert Camacho. 

Os Simpsons (1989- ) Essa lista, claro, não poderia ficar sem eles. Não obstante os personagens principais e recorrentes já terem um viés simplório da dita típica família americana, o common sense das multidões é alvo dos roteiristas com alguma rotina.

"Nós continuaremos tentando fortalecer a família americana. Para fazer com que elas se pareçam mais com Os Waltons e menos com Os Simpsons." - sim, este senhor mandou essa na convenção nacional do Partido Republicano, 1992.

A Vida de Brian (1979), do grupo britânico Monty Python, mira na cegueira religiosa defendida como fé, ou em nome dela. O Brian do título nasce na mesma noite e na manjedoura ao lado da de Jesus Cristo, e com ele por vezes é confundido ao longo da vida. Seus idealizadores pretenderam que fosse um filme a respeito da estupidez pela cegueira religiosa.

Network - Rede de Intrigas (1976) conta sobre manipulação de índices de audiência através de um apresentador de jornal que apenas diz, ao vivo, que vai se matar, depois que sabe será demitido em breve. A ideia é como manter o interesse do público no auge, enquanto se dá voz a alguém precisando de tratamento. O protagonista passa a dizer o que o "cidadão médio sente" e com o que se indigna, antecipando (?) o demagogo moderno, e sendo contemporâneo de um tipo de midiático como Howard Stern, que inicia sua carreira como locutor em 1976 ainda em uma rádio universitária e que acrescenta baixaria sem culpa ao repertório.

Doutor Fantástico (1964), clássico de Stanley Kubrick, talvez fuja um pouco da ideia dessa postagem, uma vez que é focado no idiota no poder - o idiota com o gatilho da bomba atômica, capaz de começar o fim do mundo. Mas fica como referência e, temo, um conto cautelar imorredouro...

domingo, 11 de junho de 2023

Corrosão

 

Corrosão (2018), de Ricardo Labuto Gondim: finalista do Argos e vencedor do Odisseia em 2019

Aviso: SPOILERS abaixo.

Candidato a se tornar um clássico dentro do subgênero de FC hard brasileira, o que torna o livro em si é um raro exemplar, Corrosão é aquele tipo de ficção científica que nos inspira e deslumbra, um filho da tradição clarkeana de sense of wonder regado a música erudita, mesmo que em um mundo primariamente de máquinas e seres humanos destas não muito distintos: ao mesmo tempo, apresenta ao leitor aspirações, inspirações e outras pirações filosóficas e metafísicas que me levam a mais do que encaixá-la sob um subgênero, mas a arriscar dizer que esta é a lua de platina da FCB.

O futuro dos 2150s descrito por Gondim é, do nosso ponto do primeiro quarto do século XXI, perfeitamente crível: não bastasse questões ambientais, a sociedade é descrita como uma mesma grande massa global conformada e alienada sob drogas recreativas - a referência a Huxley não está lá à toa - com Estados nacionais dissolvidos e política de pouca força ou ilusória importância, sob a batuta de um mesmo  monopólio econômico, um conglomerado conhecido como apenas como a Corporação, resultando em "uma sociedade sem aspirações, corroída de baixo para cima". 

Essa credibilidade acaba dando um tom cautelar ao livro, uma leitura extra como por vezes Ficção Científica assume e exibe.

A história segue a trajetória do Nikola Tesla e seus tripulantes, encarregados de seguir até a lonjura de Plutão atrás de um asteroide contendo "vastas reservas de um óxido extraordinário, capaz de manter propriedades supercondutoras sob altíssimas temperaturas sem entrar em fusão", podendo mesmo "apresentar propriedades antigravitacionais 'voláteis' ou 'coisa similar'"; alcançá-lo, mineirá-lo e retornar com o butim para a citada Corporação. A nave foi construída para a missão em específico, sendo um ápice de tecnologia. Mas ao contrário do que foi a ida do Homem à Lua, os primeiros seres humanos a irem tão longe assim da Terra não são retratados com o glamour das primeiras décadas da exploração espacial tripulada, antes havendo mais uma atmosfera de apenas um outro dia de trabalho, apenas sendo mais longe dessa vez: o que é par com o tipo de sociedade que não se deixa exclamar com o que acha ser pouco, o que significa deixar de passar oportunidades assim.

No caminho, surge o inesperado: uma anomalia eletromagnética em espaço já devidamente cartografado, de intensidade e tamanho que jamais deixariam de ter sido notadas anteriormente, com a tecnologia vigente já há tempos. Despertado de seu sono em animação suspensa pela IA de bordo, o comandante da missão decide então investigar, acordando o resto de sua tripulação. A partir daí, somos apresentados aos demais e como reagem, no crescendo em que a investigação se dá até o centro da anomalia, e o inesperado revela conter o impensável: nada menos que o HMS Titanic - sim, o próprio, toneladas de aço, inteiro ainda que sob muita, muita ferrugem.

O astronauta e a ostentação de época: Memories - The Magnetic Rose, de Otomo (animação de 1995) também me lembrou.

As personagens, seguindo a tradição hard s.f., são de curto ou difícil desenvolvimento, já que FC normalmente é um tipo de história orientado à uma trama, quanto mais FC hard. Mas, mesmo assim, temos indícios do que esperar de cada um dos tripulantes do Tesla: são oriundos de uma sociedade onde há baixo envolvimento de pessoas com o que quer que seja além de suas atividades profissionais, e o ser humano que resta é pouco mais do que uma engrenagem em uma sistema maior, havendo pouco interesse na construção de uma poética pessoal, mesmo em uma época onde assuntos e oportunidades não faltem, parecendo se tornar cada vez mais difícil convencer as pessoas disto: não obstante, dois deles procuram quebrar esta fôrma, olhando para os demais com uma certa condescendência.

Dois personagens mantêm uma relação conflituosa devido às suas personalidades, e no processo um ajuda o outro a se delinear: o comandante da nave, Kiril Alexandrovich Mravisnky, e a geofísica espacial Sandrine Mercier divergem diametralmente sobre a investigação inesperada. Ele, em último caso por não ter outra saída em termos do dever; ela, deixando-se levar pelo medo do desconhecido, uma vez que fica claro que a tal anomalia não pode ter uma fonte natural. 

Mravinsky é um comandante de astronave como se espera que os comandantes sejam, autênticas rochas de salvação, nem tão aprofundados em um dado campo de conhecimento como os demais, mas capaz de liderá-los, ouvir as considerações e tomar a decisão que tiver que tomar. Já Mercier se mostra frágil e desequilibrada, e com outros atributos que, quando comparados, até pelo texto se torna fácil gostar de um e desgostar da outra. Apesar do que, entendemos Mercier, uma vez que ela é alguém que se permite sentir medo do desconhecido.

Corrosão, indeed...

Dos demais personagens, contamos com a astrofísica de bordo, Anitra Nordraak, como ótimo exemplo desse tipo de super-especialista gerado por esta sociedade - e um tipo ideal para a importância da missão. Daniel Martinu, projetista da Tesla e engenheiro de bordo, é o outro personagem que consegue 'quebrar a fôrma', permitindo-se um nível de conjectura filosófica enquanto vivencia o insólito - apenas para, dado momento, igualar-se a Mercier, ao ser o primeiro a, in loco, constatar o nome do transatlântico. Ambos, poética pessoal ou não, sucumbem ao medo face o irracional. Temos ainda Oleg Koslov, o piloto da nave e uma sexta tripulante que misteriosamente não se ergue do sono criônico, Anca Kertész. Ela é a profissional de comunicações, e descrita como tendo uma personalidade catalisadora, ajudando a aproximar o grupo de trabalho - e tendo "uma curiosidade incomum naquele tempo". Olhando em retrospecto, pode-se supor que sua ausência pode ter sido sentida no desenrolar do drama.

E há o sétimo tripulante: ANNA, a IA de bordo, uma personalidade construída que trabalha com estatísticas do comportamento humano para o que esperar das reações dos demais, e mesmo antecipar. Ao mesmo tempo, ela está simultaneamente em cada canto da nave e da missão, zelando pelo sucesso da própria. A comparação inevitável é com Hal 9000, ainda que ANNA seja mais sutil em garantir o cumprimento da diretiva que obriga a investigação em caso de possibilidade de um primeiro contato com inteligências alienígenas, como saberemos mediante o destino de uma das personagens.

MOTHER, o computador da Nostromo em Alien - o 8o. Passageiro, também pode ser lembrado.

.As comparações com 2001 - Uma Odisseia no Espaço, são inevitáveis. Ao contrário do Monolito, que é a total ausência de significado possível para quem o investiga, o insólito apresentado pelo Titanic trabalha com algo plenamente reconhecível e que, por isso mesmo, fica ainda mais indecifrável. Os momentos de pânico passados por Martinu e a reação de Mercier são completamente justficáveis. Cenas como o encontro a bordo do Titanic e a desativação de parte das capacidades cerebrais de Anna igualmente remetem, assim como os momentos extemporâneos do epílogo.

Os detalhes técnicos permeiam a narrativa como os fragmentos da corrosão que o transatlântico sofre, e da mesma forma que as demais interferências nublam a visão clara do que ocorre aos personagens, trafegar pelos parágrafos pode ser de uma navegação incerta. Em outra narrativa, ou por outro autor, isso poderia ser um problema, mas Gondim toca o barco com habilidade o bastante para que isso, voluntariamente ou não, funcione como uma meta-narrativa. Navegar é preciso, tudo mais é impreciso, e prosseguimos, noite adentro, no encalço do mistério, atrás do farol de luzes suspeitas.

Por último; se o Titanic, ápice tecnológico naval, é lembrado como uma espécie de arauto do fim da 'Era Dourada' do moderno capitalismo inicial, penso se, por paralelo, sua reaparição e contribuição com o naufrágio do Nikola Tesla - ápice tecnológico aeroespacial - não poderia simbolizar o fim de outra era, também bem capitalista, ainda que elite de agora zele por prudência e discrição. Portanto, resta aguardar por uma continuação, e o ICG7-51 - com seu conteúdo cheio de promessas, econômicas e narrativas - possa ser finalmente alcançado.

Recomendo.

Corrosão
292 p.
Caligari