Aviso: SPOILERS abaixo.
Candidato a se tornar um clássico dentro do subgênero de FC hard brasileira, o que torna o livro em si é um raro exemplar, Corrosão é aquele tipo de ficção científica que nos inspira e deslumbra, um filho da tradição clarkeana de sense of wonder regado a música erudita, mesmo que em um mundo primariamente de máquinas e seres humanos destas não muito distintos: ao mesmo tempo, apresenta ao leitor aspirações, inspirações e outras pirações filosóficas e metafísicas que me levam a mais do que encaixá-la sob um subgênero, mas a arriscar dizer que esta é a lua de platina da FCB.
O futuro dos 2150s descrito por Gondim é, do nosso ponto do primeiro quarto do século XXI, perfeitamente crível: não bastasse questões ambientais, a sociedade é descrita como uma mesma grande massa global conformada e alienada sob drogas recreativas - a referência a Huxley não está lá à toa - com Estados nacionais dissolvidos e política de pouca força ou ilusória importância, sob a batuta de um mesmo monopólio econômico, um conglomerado conhecido como apenas como a Corporação, resultando em "uma sociedade sem aspirações, corroída de baixo para cima".
Essa credibilidade acaba dando um tom cautelar ao livro, uma leitura extra como por vezes Ficção Científica assume e exibe.
A história segue a trajetória do Nikola Tesla e seus tripulantes, encarregados de seguir até a lonjura de Plutão atrás de um asteroide contendo "vastas reservas de um óxido extraordinário, capaz de manter propriedades supercondutoras sob altíssimas temperaturas sem entrar em fusão", podendo mesmo "apresentar propriedades antigravitacionais 'voláteis' ou 'coisa similar'"; alcançá-lo, mineirá-lo e retornar com o butim para a citada Corporação. A nave foi construída para a missão em específico, sendo um ápice de tecnologia. Mas ao contrário do que foi a ida do Homem à Lua, os primeiros seres humanos a irem tão longe assim da Terra não são retratados com o glamour das primeiras décadas da exploração espacial tripulada, antes havendo mais uma atmosfera de apenas um outro dia de trabalho, apenas sendo mais longe dessa vez: o que é par com o tipo de sociedade que não se deixa exclamar com o que acha ser pouco, o que significa deixar de passar oportunidades assim.
No caminho, surge o inesperado: uma anomalia eletromagnética em espaço já devidamente cartografado, de intensidade e tamanho que jamais deixariam de ter sido notadas anteriormente, com a tecnologia vigente já há tempos. Despertado de seu sono em animação suspensa pela IA de bordo, o comandante da missão decide então investigar, acordando o resto de sua tripulação. A partir daí, somos apresentados aos demais e como reagem, no crescendo em que a investigação se dá até o centro da anomalia, e o inesperado revela conter o impensável: nada menos que o HMS Titanic - sim, o próprio, toneladas de aço, inteiro ainda que sob muita, muita ferrugem.
O astronauta e a ostentação de época: Memories - The Magnetic Rose, de Otomo (animação de 1995) também me lembrou.
As personagens, seguindo a tradição hard s.f., são de curto ou difícil desenvolvimento, já que FC normalmente é um tipo de história orientado à uma trama, quanto mais FC hard. Mas, mesmo assim, temos indícios do que esperar de cada um dos tripulantes do Tesla: são oriundos de uma sociedade onde há baixo envolvimento de pessoas com o que quer que seja além de suas atividades profissionais, e o ser humano que resta é pouco mais do que uma engrenagem em uma sistema maior, havendo pouco interesse na construção de uma poética pessoal, mesmo em uma época onde assuntos e oportunidades não faltem, parecendo se tornar cada vez mais difícil convencer as pessoas disto: não obstante, dois deles procuram quebrar esta fôrma, olhando para os demais com uma certa condescendência.
Dois personagens mantêm uma relação conflituosa devido às suas personalidades, e no processo um ajuda o outro a se delinear: o comandante da nave, Kiril Alexandrovich Mravisnky, e a geofísica espacial Sandrine Mercier divergem diametralmente sobre a investigação inesperada. Ele, em último caso por não ter outra saída em termos do dever; ela, deixando-se levar pelo medo do desconhecido, uma vez que fica claro que a tal anomalia não pode ter uma fonte natural.
Mravinsky é um comandante de astronave como se espera que os comandantes sejam, autênticas rochas de salvação, nem tão aprofundados em um dado campo de conhecimento como os demais, mas capaz de liderá-los, ouvir as considerações e tomar a decisão que tiver que tomar. Já Mercier se mostra frágil e desequilibrada, e com outros atributos que, quando comparados, até pelo texto se torna fácil gostar de um e desgostar da outra. Apesar do que, entendemos Mercier, uma vez que ela é alguém que se permite sentir medo do desconhecido.
Corrosão, indeed...
Dos demais personagens, contamos com a astrofísica de bordo, Anitra Nordraak, como ótimo exemplo desse tipo de super-especialista gerado por esta sociedade - e um tipo ideal para a importância da missão. Daniel Martinu, projetista da Tesla e engenheiro de bordo, é o outro personagem que consegue 'quebrar a fôrma', permitindo-se um nível de conjectura filosófica enquanto vivencia o insólito - apenas para, dado momento, igualar-se a Mercier, ao ser o primeiro a, in loco, constatar o nome do transatlântico. Ambos, poética pessoal ou não, sucumbem ao medo face o irracional. Temos ainda Oleg Koslov, o piloto da nave e uma sexta tripulante que misteriosamente não se ergue do sono criônico, Anca Kertész. Ela é a profissional de comunicações, e descrita como tendo uma personalidade catalisadora, ajudando a aproximar o grupo de trabalho - e tendo "uma curiosidade incomum naquele tempo". Olhando em retrospecto, pode-se supor que sua ausência pode ter sido sentida no desenrolar do drama.
E há o sétimo tripulante: ANNA, a IA de bordo, uma personalidade construída que trabalha com estatísticas do comportamento humano para o que esperar das reações dos demais, e mesmo antecipar. Ao mesmo tempo, ela está simultaneamente em cada canto da nave e da missão, zelando pelo sucesso da própria. A comparação inevitável é com Hal 9000, ainda que ANNA seja mais sutil em garantir o cumprimento da diretiva que obriga a investigação em caso de possibilidade de um primeiro contato com inteligências alienígenas, como saberemos mediante o destino de uma das personagens.
MOTHER, o computador da Nostromo em Alien - o 8o. Passageiro, também pode ser lembrado.
.As comparações com 2001 - Uma Odisseia no Espaço, são inevitáveis. Ao contrário do Monolito, que é a total ausência de significado possível para quem o investiga, o insólito apresentado pelo Titanic trabalha com algo plenamente reconhecível e que, por isso mesmo, fica ainda mais indecifrável. Os momentos de pânico passados por Martinu e a reação de Mercier são completamente justficáveis. Cenas como o encontro a bordo do Titanic e a desativação de parte das capacidades cerebrais de Anna igualmente remetem, assim como os momentos extemporâneos do epílogo.
Os detalhes técnicos permeiam a narrativa como os fragmentos da corrosão que o transatlântico sofre, e da mesma forma que as demais interferências nublam a visão clara do que ocorre aos personagens, trafegar pelos parágrafos pode ser de uma navegação incerta. Em outra narrativa, ou por outro autor, isso poderia ser um problema, mas Gondim toca o barco com habilidade o bastante para que isso, voluntariamente ou não, funcione como uma meta-narrativa. Navegar é preciso, tudo mais é impreciso, e prosseguimos, noite adentro, no encalço do mistério, atrás do farol de luzes suspeitas.
Por último; se o Titanic, ápice tecnológico naval, é lembrado como uma espécie de arauto do fim da 'Era Dourada' do moderno capitalismo inicial, penso se, por paralelo, sua reaparição e contribuição com o naufrágio do Nikola Tesla - ápice tecnológico aeroespacial - não poderia simbolizar o fim de outra era, também bem capitalista, ainda que elite de agora zele por prudência e discrição. Portanto, resta aguardar por uma continuação, e o ICG7-51 - com seu conteúdo cheio de promessas, econômicas e narrativas - possa ser finalmente alcançado.
Recomendo.
Corrosão
292 p.
Caligari
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