Anong Us - o Livro
AVISO: SPOILERS A SEGUIR.
O sistema tríplice de Alfa Centauri, distando de nós "apenas" 4,3 anos-luz,
vem sendo uma constante na Ficção Científica, e a descoberta de um planeta ao redor de Alfa Centauri C (mais conhecida como Proxima Centauri), em 2016, apenas agitou ainda mais nossos sonhos de exploração espacial: rochoso e do tamanho da Terra,
Proxima Centauri b (em minúsculo) está na distância certa para que, caso haja água em sua superfície, ser encontrada em estado líquido, o que por sua vez sugere a possibilidade de haver vida (nem que um pouco como a que conhecemos) ou, pelo menos, viabilizar alguma sobrevivência nossa: e é lá que a trama de
Silêncios Infinitos se desenrola. Passando-se no século XXVI, temos a história da expedição que lá chegou, e sua tarefa é preparar o planeta para a futura colonização.
Próxima Centauri b é retratado como um mundo de luz eternamente vermelha e imutável, como convém a um planeta que sempre mantém uma mesma face voltada à uma anã vermelha, e de vegetação escura, negra - para a máxima captação da luz solar. A atmosfera ainda é irrespirável e os níveis de radiação são problemáticos. Na verdade, temos muito pouco do planeta (há um mapa-mundi no início do livro, junto com uma breve cronologia do futuro), com a ação se passando entre os módulos da estação em que vivem e trabalham as personagens. Há descrições de sua organização, assim como as IAs presentes, e como isso acaba sendo importante a todos e à trama.
Concepção artística da vista de Próxima Centauri b e seus três sóis, no céu.
Isso por si me lembra de séries e filmes como Espaço 1999, Projeto UFO e 2001 - Uma Odisseia no Espaço: ambientes altamente tecnológicos, a única possibilidade de sobrevivência entre um exterior vazio e letal e um interior seguro porém estéril. Sob um certo aspecto, toda a tecnologia presente e o isolamento fazem com que esse tipo de cenário, em si, seja uma espécie de idealização de um laboratório onde o humano não deixa também de ser um experimento: o que, para a trama, faz sentido.
Os personagens são 26 clones adultos de especialistas em suas áreas que ficaram na Terra. Os clones mantêm alguma memória pessoal e traços da personalidade, realçados ou enfraquecidos conforme edição prévia desses originais e tratamento com remédios. Eles são peças dum grande mecanismo que preza a máxima eficiência dado a ambição da missão, e é curioso ver como, mesmo assim, o fator humano dá um jeito de se imiscuir, pelos clones ou seus originais.
A trama é contada a partir do ponto de vista de Liu, um clone que, ao despertar quando a expedição chega, recebe a carga mnemônica de dois clones: a que se destinava, a partir de seu original, e a de uma colega, Dira, cujo clone não acorda, e o sono é um enigma durante o ano que se segue, antecedendo o relato do livro. A personalidade de Liu é dominante, mas a de Dira não é apenas no plano da memória: e suprimir essa presença é de um grande transtorno para Liu: e aqui nós temos a grande sacada, representada na capa do livro, que é a apresentação da transgeneridade em um ambiente futurista e sua percepção como um erro, e o armário que disso gera -- uma vez que não há protocolos, naquela ordem perfeita, para aquela situação. O que fazer? O sentimento de inadequação de Liu lhe é avassalador.
Mas não demora muito, e o drama pessoal narrado por Liu, como já não lhe bastasse, é confrontado por outro problema: o líder da expedição morre assassinado. E há pouco tempo para descobrir, uma vez que uma tempestade gigantesca se aproxima da base.
Ao final das contas, o livro apresenta uma atualização da indefinição de se ser quem é a partir de memórias implantadas -- conforme Philip K. Dick trabalha tão bem em sua obra, desde os anos 60 -- trazendo para uma questão atual, da identidade de transgeneridade - com um twist todo próprio, como bem cabe à ficção científica. Witter também apresenta questões de ética - a eutanásia planejada para Dira, uma vez que a preservação de seu corpo apenas consome recursos - e, novamente, recontextualiza no ambiente futurista que preparou. A ideia da descarte de um ser humano, ou seu clone, não termina com a questão da eutanásia: ao meu ver, todos os clones presentes são descartáveis, e confesso que esperava dada altura do livro isso seria revelado, em mais uma menção a PKD - agora, com o tempo de vida útil dos replicantes. São questões, ainda, que valem a tag para este post de transhumanismo.
E isso, agora, me leva a ler uma nova versão de um tema que gosto muito, que chamo de "pecados dos pais": como a geração subsequente à de outra, em seu tempo protagonista, sofre com os erros cometidos por esta - no caso, os clones sofrem pelos atos de seus orginais orgânicos. Há uma lembrança aqui, pelo conceito somente, do filme
A Ilha, com Ewan McGregor e Scarlett Johansson, em que clones devem - falando em termos amplos - pagar pelos erros de seus originais.
Não é à toa que os clones, no livro, recebem seus nomes baseados em um deus de alguma cultura ao redor do mundo que tenha a ver com sua função, especialmente Hebe, "especialista em medicina de prevenção, cuidado e bem-estar", recebendo o nome da "deusa grega da juventude"; Naga é devido a uma "entidade guardiã entre os tailandeses", sendo "especialista em engenharia de segurança, com habilidades de luta e sobrevivência", etc. A nave que os transportou é chamada Vímana, e foi pilotada até lá pela IA cujo acrônimo se lê AGNI, também uma divindade hindu, do fogo, e ligada aos mitos de criação. Há uma bela descrição, no início do capítulo 3 (p. 27) comparativa entre o desmantelamento da nave para novas funções e a liberação de sua carga como a nova vida que se fará no planeta com mitos cosmogônicos, de onde dos restos mortais de um ser primordial surge a vida e o próprio mundo. Nada mais mitológico - ou, ao menos, grego-mitológico - que os erros antigos também sejam transmitidos nas novas oportunidades.
Terra: Próxima b não está impressionado.
Por último, gostaria de notar que foi com certa surpresa,
pouco tempo depois de ter lido Corrosão, de ter me deparado tão cedo com outro livro brasileiro de ficção científica
hard, ainda que tomando mais liberdades quanto ao cenário do que seria Próxima Centauri b - se bem entendi. Mas, ao contrário dos dilemas cósmicos de Gondim, Witter foca no dilema interno da personagem central, apesar do nível detalhado de uma missão de contornos épicos executada em ambiente altamente tecnológico, porém igualmente sem lançar mão de soluções mágicas, como convêm à
space opera ou outros subgêneros da ficção científica: percebam, não tenho nada contra isto, mas reitero que é bom ver autores nacionais com a segurança de conduzir suas tramas dentro desse tipo de regra do jogo.
E assim como o livro de Gondim, gostaria de ver mais - particularmente, ainda mais que Corrosão, Silêncios Infinitos (um romance curto) termina sugerindo fortemente que pode haver uma parte 2 em algum lugar do hd da autora.
O livro faz parte da coleção
Dragão Mecânico, da editora Draco. O capricho gráfico que lhes são peculiares está lá.
Recomendo.
Silêncios Infinitos
130 p
Draco