sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Devoradores de Estrelas


Debulhadores de Explicações

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Devoradores de Estrelas (Project Hail Mary - link pra wikipedia aqui), de Andy Weir, é passado em um futuro próximo, quando a energia emitida pelo Sol enfraquece rapidamente e o bastante para ameaçar a existência do ser Humano. Colônias de incontáveis seres unicelulares batizados astrofágicos (do neologismo original astrophage - o que significa que deveria ser astrófago, não?) são as responsáveis por isso, e percebe-se que é um problema de dimensões interestelares: outras estrelas vizinhas estão com o mesmo problema. O protagonista é o sobrevivente de uma tripulação internacional elencada para a primeira viagem interestelar da espécie Humana, para descobrir porque a estrela de destino - Tau Ceti, a cerca de 12 anos-luz de nós - não está sendo afetada e, uma vez lá, descobrir a solução para o nosso problema.

A narrativa se alterna entre o tempo presente da missão, no momento em que o dr. Grace desperta de seu sono após anos em coma induzida, e a sequência de eventos, na Terra, que aos poucos o levou a estar naquela missão. Essa quebra em dois momentos serve para mostrar diversos motivos por trás do momento do presente, e é dado, narrativamente, um motivo pra isso: Grace enfrenta uma amnésia severa, a que se atribui como efeito colateral do coma. É algo bem crível, dado que ao número de coisas erradas se acrescenta a morte dos dois outros astronautas que viajavam com ele, e que, a princípio, não sabe quem são - apesar de um sentimento forte de familiaridade com eles. É um despertar envolto em mistérios, um tipo de trama presente em games e filmes, em que encontrar objetos e descobrir seu funcionamento ativa sequências de flashback. A essa altura um recurso manjado, na verdade se tornou um ponto alto da história, ao meu ver. Porém...

Andy Weir começa, com um terceiro romance, a soar como um autor de um truque só: a voz do protagonista é a mesma. 

Não vejo maiores diferenças entre o Ryland Grace daqui e Mark Watney de Perdido em Marte, e mesmo Jasmine 'Jazz' Bashara, de Artemis: não somente fica tudo nas costas da protagonista, com pouco uso para coadjuvantes (ok, debatível aqui, conforme mais abaixo), como temos o indivíduo x meio ambiente repetido pela terceira vez (sim, pondo Artemis nessa, um ambiente social), no qual novamente tal indivíduo, para resolver o dilema em que está metido, terá que "science the shit out of this", conforme no roteiro do filme Perdido em Marte (em uma fala que não foi do autor). 

Em tempos de boçalidade naturalizada, um protagonista inteligente tem sua vez? Mas especialmente em tempos assim. Mas isso, em si, não é o problema. O problema - meu, ao menos... - é a sensação de repetição de como o personagem é estilizado por Weir: três vezes é um padrão.

Este indivíduo é genial, com um pé menor ou maior fora da sociedade/sociabilidade, no melhor estilo "inteligente demais para seu próprio bem". As descrições técnicas, tecnológicas e científicas que sempre lhe vêm com facilidade, mas que podem pesar o texto para o leitor, são contrabalançadas pelo mesmo humor que adiciona uma piada, palavrão ou outra informalidade para quebrar com esse peso. 

E Devoradores de Estrelas tem descrições. Aos montes. Tive a impressão que mais do que Perdido, mais do que Artemis, em que ele tem que montar a cidade lunar inteira. Parece que Weir se deu ao trabalho de explicar tudo o que conseguiu pensar sobre cada princípio teórico a respeito de seus astrófagos, do método desenvolvido para conhecê-los melhor, das descrições materiais da tecnologia desenvolvida para isto, como chegar a uma tecnologia de combustível - e nem chegamos ainda à parte em que a história vai para Tau Ceti, e encontra uma segunda forma de vida alienígena. O resultado, infelizmente, é - ou me foi - cansativo.

São poucos os personagens de monta. No passado, há Eva Stratter, coordenadora "carta branca" para solucionar da maneira que for o problema da ameaça mundial. Ela se opõe a Grace, não de uma maneira ideológica, mas enquanto postura. Grace, vamos aprendendo, não é exatamente um personagem gostável, nem vai demonstrar a iniciativa (ainda que em nome da sobrevivência) de Watney ou Jazz. É como se fosse uma variante whinny bitch de ambos, ao ponto de poder pôr tudo a perder, se dele dependesse - e, adivinha? Depende. 

A redenção de Grace vem pelo convívio enquanto náufragos interestelares dele e do alienígena vindo da estrela 40 Eridani, ali por Tau Ceti pelo mesmíssimo problema. Apresenta-se como algo similar a uma aranha de cinco patas do tamanho de um cão labrador, cujo contato se mostra parte do desafio a ser superado: ambos têm que se entender para poder superar seus problemas. A personalidade do alienígena, apelidado Rocky, serve como alívio cômico na estratégia de diluição de infodump do autor. Mas não é algo irritante, muito pelo contrário, torna-se - sem maiores competições - o personagem mais gostável da história. Apesar de ser uma aranha de cinco patas vivendo em um ambiente intolerável para humanos, ele é dotado de virtudes que o tornam facilmente gostável, e, acima delas, uma solicitude que é o que falta em Grace. Rocky acredita piamente no que deve fazer, o que somos levados a pensar sobre Grace - quando finalmente as memórias de logo antes da decolagem lhe são destravadas.


Algo contra o universo sendo salvo através do poder do bromance da amizade em uma obra de hard s.f.? Nem um pouco! (fonte)

Em termos de ficção científica, Weir nos brinda com mais um livro de hard science fiction: o mínimo possível de ficção antes que escape dos dedos de nosso entendimento das leis da Física. Ele parece continuar, pelos motivos acima, repetir com o que deveria ser um erro: a tentação em mostrar uma pesquisa que certamente lhe foi fascinante ao leitor.

Os cenários em si não são de maiores arroubos. O futuro poderia ser ainda nessa década (Weir parece gostar de near future, se considerarmos Perdido em Marte se passando em 2035 e Artemis em 2080), e o mundo de Tau Ceti e, além de 'belas nuvens verdes', não demonstra muito, com a ação se passando mais em sua órbita, quando chega sua vez. Outros exoplanetas, até por terem perfil semelhante, de espessas camadas de nuvens de dióxido de carbono, oferecem pouco para um sense of wonder. O cenário insólito melhor apresentado - até porque, descrições... - é a Hail Mary, a nave que leva Grace e seus companheiros desafortunados. Assim como em Artemis (aliás, resenhado aqui) há diagramas da cidade no início do livro, um esquema do funcionamento da nave é apresentado.

Tau Ceti é um velho rosto conhecido da ficção científica, figurando em romances de Harry Turtledove (o sistema natal da Raça da série Warworld), Kim Stanley Robinson (Aurora) e Ursula K. LeGuin (Os Despossuídos), entre outras obras e autorias: ocorre que, em uma distância de "modestos" 12 anos-luz, chama ainda atenção pelas similaridades com nosso Sol, o que poderia sugerir planetas próprios, semelhantes ao nosso (ainda que nenhuma primeira detecção de exoplanetas por lá tenha ainda sido confirmada). 40 Eridani é um sistema estelar triplo distando de nós 16 anos-luz, e - salvo até nova mudança - onde orbita Vulcano, lar do Sr. Spock e sua raça paterna. Estranhamente, Weir parece pular as duas estrelas extras, apesar de tratar o - provável - exoplaneta local com algum cuidado.

Mas não é nem perto do que ele resolve pular, enquanto construção de uma psique e sociedades inumanas, como a dos eridianis, apesar do investimento em sua biologia. Obviamente que isso estouraria o limite de qualquer livro, e imagino que, nos agradecimentos, a ausência de alguém ligado às ciências humanas e sociais denotaria onde realmente ele preferiu priorizar a pesquisa. 

De qualquer maneira, os eridianis podem ser lido como detentores das virtudes - do ponto de vista ocidental - perdidas pelos humanos, de seu indivíduo ao seu comportamento coletivo. Penso se não pode haver uma reciclagem de alguma espécie de nobre selvagem, a quem falta a malícia do 'homem moderno'... ainda, o final escolhido por Grace não o tornaria um 'gone native white savior'? 

Cartas para a redação.

Em suma: achei muito imaginativo, mas que o excesso de descrições pode deixar o resultado um pouco aquém. O melhor exemplo que ainda conheço de escritor de hard s.f. é Arthur C. Clarke, que nem nos damos conta que ele é um escritor versado nesse subgênero. Fica a dica?

Devoradores de Estrelas
424 p.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Tolkien e construção de mundos

 Excerto de entrevista de JRR Tolkien, onde ele fala a respeito de criar um mundo. Interessante, até pelo tempo da entrevista, que o termo worldbuilding não é mencionado. 



quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Worldbuilding: Universos Ficcionais Brasileiros

 Estou com um questionário dedicado a universos ficcionais feitos no Brasil e suas autorias, quem quiser preencher / puder divulgar, agradeço muito: https://forms.gle/73QDsgtdHLihXHug6

A ideia é lançar os resultados de qualquer modo até fim do ano. Se houver interesse e procura o bastante, divulgo em novembro, em um simpósio.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Paradoxo de Theséus

 

Paradoxo de Theséus (2022)

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Um romance curto, Paradoxo de Theséus recheia bem suas 129 páginas com ideias e considerações sobre sobre a autenticidade de uma pessoa, levando em conta ética e filosofia, às vésperas de um grande salto tecnológico que irá dar à Humanidade a vida eterna - ou a possibilidade de sua extinção.

Passado no ano 2071, é uma ficção científica near future, que pode nos lembrar de séries recentes como Years and Years e Extrapolations - Futuro Inquietante, Mesmo se deixarmos a tecnologia mais avançada  - e (ainda/por enquanto) mais fantasiosa - do romance de lado, sobra uma bela apresentação sobre como a percepção/ponto de vista é influenciado pela intermediação digital, quando se torna comum o uso de lentes de contato que captam sinais que todos passam a emitir como cartões de visita sempre online, informando nomes, pronomes e diversos dados biográficos - levando alguns à necessidade de hackear o sistema e, com isso, tornar-se invisível. Segue o trecho da página 35:

A informação metavérsica sempre haveria de sobrepujar o mundo dos fatos. Se as lentes dissessem que uma árvore é uma pedra, levaria alguns segundos até que a mente fosse capaz de contestar a informação errada. Por isso, o truque de Barbara funcionava tão bem. Com a maquiagem capaz de obstruir o reconhecimento facial, ela era ninguém para o metaverso e, sendo ninguém, poderia transitar quase invisível.

Em uma sociedade onde tudo era tão exposto e a cognição média - e inteligência nada tendo a ver com isso - tão afetada e dependente de tal intermediação, as possibilidades de cancelamento e perseguição são amplas, como as que sofre o protagonista.

Deixando claro, isto ocorre principalmente onde a maior parte da trama se desenrola, Utreque, na Holanda: a "evasão de privacidade" é dita não ser tão cultural assim quanto na Turquia como é na Europa, quando temos uma cena em Istambul.

Importante notar que, todo esse modo de viver e de ver é detalhado ao longo das 120 páginas do romance, sendo a informação bem distribuída e relevante a cada ponto. 

Podemos ter Paradoxo de Theséus como também uma história sobre ficção científica transhumanista, o que lembra outro romance da mesma coleção Dragão Mecânico, Silêncios Infinitos de Nikelen Witter (resenhado aqui), indicando a atenção de algumas de nossas autorias nesses temas.

A desconhecida série Century City: casos legais sobre direitos de clones e afins.

A trama gira ao redor do acionamento do Basilisco, uma máquina constituída de "um trilhão e setecentos e vinte bilhões de robôs de 0,05 micrômetros de diâmetro", capazes de captar e copiar as memórias, personalidades e quaisquer outras informações de um indivíduo, levando-as, teoricamente, para a posteridade digital. Mas, já se contando 23 personalidades copiadas, entre as intelectual, ética e artisticamente mais relevantes para o planeta, fica a pergunta: por que o Basilisco não se manifesta?

Este acionamento é seguido de opiniões fortes e divididas, permeando a sociedade, especialmente sobre quem se opõe: tanto o Humanismo Radical quanto a Frente de Libertação Animal rejeitam o experimento. O HR, por rígidas questões da identidade em se ser Humano, enquanto a FLA, devido a um experimento da tecnologia do Basilisco em animais, com fins horrendos.

No momento do livro, o das 23 personalidades já copiadas, de pessoas notáveis e - esta agora, condição indiscutível para o armazenamento - às portas da morte, os ânimos se acirram no campo do debate e da miltância, com ações cada vez mais agressivas ocorrendo: em breve, "cultura do cancelamento" não será o suficiente. 

Missão Garatéa - gentis menções assim como a fé na ciência made in BR, como de praxe na obra do autor.

Os personagens se colocam, diante de tudo isso, dentro do papel que lhes cabe: o criador do projeto, seu irmão, sua aliada, sua antagonista e seu assistente. Há uma rede entre eles, especialmente os 3 primeiros, de amparo por afeto genuíno. A antagonista, ligada a uma das facções radicais, opera dentro de uma hipocrisia, usando os meios de seu grupo para satisfazer motivações pessoais contra o projeto do Basilisco. É uma personagem fácil de se antipatizar (mesmo ao se compreender suas motivações), embora o protagonista seja também difícil de simpatizar: não só pela natureza de seu projeto e mas por seu compromisso com o mesmo é que o levam não só para um demorado passeio pelo quintal do Cientista Louco, mas a ameaças extremas para remover qualquer oposição - o que lhe salva, o que lhe puxa para o pé-no-chão e apela ao seu lado humano são o carinho e preocupação por seu irmão, portador de Síndrome de Angelman, que mesmo a ciência da metade do século XXI apenas pode aliviar muito pouco. Obstinação do tipo, "até as últimas consequências, aproximam protagonista e antagonista. O quinto personagem, o assistente do protagonista, é peça fundamental para a trama, com suas próprias motivações.

Cabe dizer que protagonista e aliada também têm transtornos, dentro do espectro autista, com suas peculiaridades. Ela ainda sofre de agorafobia, combatível sob pesados medicamentos - mas também ama o irmão do protagonista, genuinamente se preocupando com ele. Sendo assim, construídos sobre seus erros, os personagens navegam pela história, dando o que creem ser o melhor de si.

O que me leva ainda pensar: antes de algum desejo por representatividade por parte do autor; ao desenvolver assim seus personagens, consideremos a noção da Humanidade, no amplo sentido biológico, histórico e geográfico da coisa. Ao falarmos assim da espécie humana, temos uma ideia geral e difusa sobre pessoas que, a princípio, parecem ditas normais: mas, como cantava Gal ou Caetano (e antes, talvez comentasse Picasso), de perto ninguém é normal. Neurodivergente é o novo normal? Talvez. Mas para salvar - ou condenar - de vez essa Vaca Profana, é o que tem pra hoje.

Saros 136: autor multimídia, e alguns temas comuns a ambas as obras.

A expectativa do "Despertar da Máquina" lembra filmes como Colossus (1970), A Geração Proteus (1977) ou os contos Disque F Para Frankenstein, de Arthur C. Clarke, e o micro-conto de Frederic Brown, Resposta: o 'complexo de Frankenstein', que Asimov nos advertia contra - Homem cria Robô, Robô mata Homem. Claro que a midiografia aqui vai longe (de cabeça, franquias e filmes como O Exterminador do FuturoThe MatrixLucy, etc.), mas uma coisa legal do livro é que se passa no momento da expectativa da ativação daquilo que, se não for nos extinguir e ponto, pode extinguir nosso modo de vida/ver as coisas.

O "paradoxo de Teseu" do título se refere a um exercício de pensamento, sobre, se após anos e anos de manutenção e substituição de partes gastas, defeituosas, de um navio, ao ponto em que não há mais uma única peça original da embarcação: ainda é o mesmo navio? E, sendo possível montar um segundo navio só com as peças antigas, qual dos dois navios é "o tal"? 

Sendo assim, se uma consciência é alçada além de seu corpo orgânico original para um 'estado de graça' sintético: ele ainda é a mesma pessoa, mesmo se a versão digital for a única que estiver sobrando? E, caso ainda sobre a original, quem é o verdadeiro pai das crianças? Quem é a autêntica pessoa amada? Quem é o autor dessa obra? Quem é o dono do imóvel? Quem é o verdadeiro Slim Shady? E, provavelmente acima de tudo: quem vai pagar os impostos?


"Eu era Dave Bowman."

Em Saros 136, uma graphic novel de seu roteiro, Alexey propõe uma passagem de tocha entre o Homo Sapiens e cetáceos por nós modificados: há, em ambas as obras, um preservar do conhecimento assim como a geração de novos seres sencientes, porém existências díspares que, devido a isso, reluta-se em reconhecê-las em pé de igualdade como gente.

Essa validação do Outro como gente talvez seja admitir, de uma vez por todas, que apenas ser Humano não é algo tão especial como tantos e tantos milênios de religiões e tradições antigas nos fizeram crer. E talvez inclua, nesse desapego, uma dose cavalar de generosidade que, como sociedade, talvez não obtenhamos tão cedo.

Paradoxo de Theséus
129 p
Draco

quarta-feira, 8 de maio de 2024

2x Godzilla

Aviso: SPOILERS a seguir (sim, é Godzilla, eu sei, mas sempre tem um...)

Assisti a Shin Godzilla (2016) e Godzilla Minus One (2023). A maratona kaijuística me mostrou dois filmes diferentes, dentro do velho tema - desde os anos 60 - do lagartão radioativo que invade Tóquio, com algumas similaridades (além do protagonista e seu passeio predileto).

Cabe notar ainda que ambos os filmes não pertencem ao título em andamento nos cinemas de rinha de kaiju (Godzilla vs Kong, Rei dos Monstros, etc.).

Gostei da ideia de drama histórico.

Em G-1, a história se passa nos primeiros fins da II Guerra Mundial e a capitulação do Japão, onde um ex-piloto de aviação chega em uma ilha de apoio e reabastecimento aéreo, com uma equipe de mecânicos à espera de qualquer ocorrência: logo fica claro que o piloto é um kamikaze que mudou de ideia na hora, e com essa vergonha ele vai ter que viver. Naquela mesma noite, Godzilla surge na ilha, e devasta a tudo e a todos, menos o piloto e o chefe dos mecânicos. É, entretanto, uma versão bem menor do titã a que estamos acostumados, ainda maior que um tiranossauro, mas também nem tanto. Eles sobrevivem e rumam para Tóquio, ainda arruinada pelo fim da guerra, onde perdem contato por alguns anos e boa parte do filme, que agora foca no piloto. Anos mais tarde, após a Operação Crossroads, de testes nucleares americanos conduzidos no atol de Bikini, Godzilla se torna o que esperamos ver e, pobre Tóquio. 

Ok, realmente maior que um tiranossauro...

O filme acaba sendo mais sobre a redenção do piloto, focando em um drama pessoal de reconstrução, nessa mesma Tóquio e Japão em seus difíceis anos do pós-guerra.

Estilosaaaaaço!

SG se passa nos dias de hoje, em uma moderna Tóquio onde, na baía, uma forma de vida gigantesca e desconhecida começa a atazanar a vida do cidadão comum. Ela saí do mar e começa a se empurrar pela superfície, molenga como é, pois é uma vida marinha, ganhando sustância através de uma das suas duas ou três "evoluções" ao longo do filme. Godzilla, aqui, é parte de um mistério biológico, tanto de onde ele veio (fundo do mar, alterado por detritos radioativos lançados no fundo do oceano), até como ele realmente "funciona": pois há períodos onde ele "desliga" ou desiste de avançar, o que dá uma pausa para a cidade respirar e procurar evacuar; e é nisso que o filme se destaca. 

A seguir, em Ultraman

Ao contrário do anterior, bastante linear e convencional, aqui temos em cortes rápidos e sequências banais reuniões, reuniões e mais reuniões de escritórios, desde os do Primeiro Ministro até entre cientistas, técnicos e mesmo teóricos da conspiração: Godzilla agora se revela um problema político (o que pra mim foi um take originalíssimo). Não há um protagonista (humano) propriamente dito, embora dois personagens, com agendas próprias, talvez possam ser apontados assim.

Godthiccla

Ambos os filmes tratam os EUA como um problema, na hora de solucionar Godzilla: em G-1, uma operação militar em larga escala - o Japão está sem nenhuma capacidade militar - pode deixar os soviéticos nervosos. Em SG, a solução americana é a do tacão, incluindo aí bombardear Tóquio com bombas H, tentando gerar mais calor, radioatividade e destruição do que o monstro consegue absorver - e não há certeza se vai dar certo. Tóquio, é claro, adeus.

Os dois filmes também tratam o próprio governo com desconfiança. Em G-1, há um governo excessivamente submisso aos EUA, e em SG, um onde, afinal, Godzilla virou um problema político e o qual leva muito tempo para decidir o próximo curso. 

Let's go dieselpuuu-unk!

Por final, ambos coincidem em duas coisas: no tratamento dado "rebuild from scraps", reconstruir a partir dos restos, das sobras, especialmente em G-1, mostrando o Japão que se reconstrói ano após ano, refletido na vizinhança onde o ex-piloto passa a morar (vale destacar, a família que ele passa a ter). Em SG não há muita oportunidade de demonstrar isso, uma vez que a devastação final foi impressionante, mas nada em escala nacional: porém, esse espírito é mais citado nas falas de personagens. É algo que parece ser consciente, no imaginário daquele país. Adiciona-se a isso o espírito voluntário: em G-1, com a inabilidade do governo, a esperança está no voluntariado das pessoas comuns, especialmente quem serviu na guerra. Em SG, a ideia da "sociedade unida" é mais sutil, mostrando os grupos de trabalho e a ideia da participação de companhias, quando uma solução não - tão - destrutiva é tentada,

O que leva à segunda coisa em comum: a derrota - será? - de Godzilla pela inteligência, e não pela truculência: deixado claro, isto como preferiam os americanos.

Vai. Irrita mesmo.

O ritmo de SG pode não ser o mais frenético, e ainda o mistério bioquímico de Godzilla foi um pouco demais pra mim, mas ainda considero um bom filme. Sob um certo aspecto, pareceu que arrisca mais do que G-1 que, como disse, é uma narrativa mais convencional. Mas gostei de ambos.

sábado, 16 de março de 2024

Autorias BR na gringa... :)

Em um curto período de tempo, dois eventos legais no campo da literatura fantástica brasileira: os autores Renan Bernardo (seu site aqui) e Clara Madrigano conseguiram destaque no mercado americano. Ele, ao ser indicado na categoria Melhor Noveleta do Prêmio Nebula deste ano, um dos maiores prêmios do campo. Ela, conseguindo ser publicada na revista de contos Fantasy & Science Fiction (já saíra na Clarkesworld), e como destaque da edição.


Parabéns aos dois, espero ver mais disso ocorrendo - com eles, e com mais autorias brasileiras, assim como do dito Sul Global! 


quinta-feira, 7 de março de 2024

A Curva do Sonho

Deliciosamente PKDickiano.

AVISO: SPOILERS A SEGUIR

A Curva do Sonho (The Lathe of Heaven, 1971), de Ursula K. Le Guin, foi premiado com o Locus (1972) e indicado ao Hugo ('72) e Nebula ('71). 

No distante ano de 2004, em um mundo de escassez de recursos dado a superpopulação; George Orr é acometido de sonhos capazes de transformar a realidade. Temendo sempre o próximo sonho e uma mudança para (ainda) pior, ele infringe a lei tomando mais remédios do que uma prescrição legal permite, e, após uma overdose, vai parar em tratamento de sonhos. Lá conhece o Dr. William Haber, especialista no assunto, com uma tecnologia adaptada para influenciar sonhos negativos. A princípio Haber inevitavelmente duvida do que Orr alega sofrer, mas após lhe induzir e monitorar um sonho, ele próprio testemunha a mudança na paisagem ao redor, tendo em mente agora duas versões conflitantes do mundo-como-ele-sempre-foi. 

Não demora para Haber entender que a chance para um mundo melhor - e uma certa dose de benefício próprio - está à mão, e ele passa a usar as sessões de tratamento que Orr legalmente deve cumprir para alterar a realidade, conforme crê o que virá a ser para o bem geral. Mas para cada nova melhoria, um desastre adicional: a superpopulação "historicamente" é combatida com uma praga que matou bilhões; o fim das doenças gerou uma mentalidade eugência; o fim da guerra entre os povos se dá com uma invasão espacial; e o fim do racismo significa o fim das identidades étnicas. Mas, na cabeça de Haber, a próxima mudança sempre será melhor - assim como maior será sua própria importância para o mundo. 

Filosofias entram em contraste na narrativa, especialmente visões de mundo taoísta versus positivista: o render-se às infinitas possibilidades do mundo versus a ânsia míope em melhorá-lo, não indo além de um controle extremamente limitado de uma situação. O artigo na wiki ainda menciona crítica a psicologia behaviorista quanto o utilitarianismo.

Capa da edição original.

As descrições de cenário primam pelo estabelecimento em poucas páginas, entre um sonho e o próximo. Mas tudo gira ao redor da cidade de Portland, no Oregon (EUA), indo desde uma versão com superpopulação, poluição e miséria até algo com poucas centenas de milhares de habitantes, com ecossistema recuperado, e dotada agora de uma importância global. Alguns marcos na paisagem são citados como referência, entre estilos arquitetônicos e necessidades urbanística que permanecem, mudam ou somem - mesmo o onipresente Monte Hood, vulcão a uma certa distância de Portland, pode ser avistado ou não, entrar em atividade ou continuar adormecido, de acordo com o momento. Nessas poucas páginas, Le Guin dá a vivacidade necessária para se entender o alcance do poder, o novo estilo presente e a miopia que se segue dos proponentes de cada novo mundo.

James Caan: boa escolha para o dr. Haber (adaptação de 2002).

O contraste entre os antagonistas é um dos pontos altos da trama. George Orr e Willam Haber são marcantemente opostos. Haber é um tipo grande e espaçoso, e além de extrovertido, é cheio de assertividades. Orr é tímido, com a personalidade 'certa' para se ter um poder tão terrível como aquele, pois, antes de mais nada, não quer tê-lo. Orr é dito ter a personalidade mais mediana já encontrada, pouco dado a arroubos ou frieza: entretanto, é forte para não se entregar à tentação de construir um mundo melhor, tão ambicionada por Haber. Le Guin explora bem as diferenças entre ambos, a cada cena que interagem, dando um domínio total do médico sobre seu paciente - que, no entanto, resiste como pode.

A terceira personagem de destaque é Heather Lelache, que me pareceu um pouco deslocada. Ela também é testemunha da mudança dos sonhos de Orr, e a princípio havia entrado na trama para - impressão minha, ao menos - ajudar Orr a se opor contra Haber, uma vez que ele sempre é descrito muito como passivo e ela, dotada de uma agressividade nata. Mas seu papel fica como interesse romântico de Orr, sem apitar maiores coisas no final das contas. Mesmo em dado momento, quando ela passa a nunca existir, Orr se mantém estável e controlado, como sempre se indicou como ele é: entretanto, isso não exatamente ajuda a importância de Lelache para a trama... ao menos, ao meu ver.

A história ganhou 2 adaptações para TV (1980 e 2002) e uma para o teatro.

Esse é um livro que lembra muito as histórias típicas de Philip K. Dick, e isto é proposital, sendo na verdade um tributo à uma velha amizade. 

Permitindo-me um pouco de especulação da minha parte... me parece que a crítica ao positivismo afeta uma visão tradicional vista na FC, quando alude ao progresso tecnológico em si a chance de redenção da sociedade: por tabela, uma crítica à própria FC, então tradicionalmente falando. Seria interessante saber se essa crítica encontrou eco ou mesmo fez vestir algumas carapuças...

The Late of Heaven foi já traduzido para o português (nos dois lados do Atlântico) algumas vezes, e Do Outro Lado do Sonhos gerou esta resenha por Marcello S. Branco. 

Parabéns à Morro Branco por mais essa.

A Curva do Sonho
224 p
Morro Branco

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Hyperion

Hyperion, de Dan Simmons: antes tarde do que nunca!

 AVISO: SPOILERS ABAIXO

Recém-publicado pela Aleph, este clássico de 1990 inédito em terras brasis - ainda, terras lusófonas - passou batido pelos nossos radares por tempo demais. Muitos aclamam como um dos grandes clássicos da literatura de ficção científica, merecendo seu lugar junto a sagas como Fundação ou Duna.

A tradução pode ser vista como sendo problemática, do título do livro - o titã Hipérion é velho conhecido da língua portuguesa - até a escolha do nome do grande antagonista da trama (até aí, Artemis - pitaqueado aqui - continuou sem acento na capa de sua edição BR pela Arqueiro: mais discreto, porém não menos estranho. Coisas do 'reforço de marca'?). Mas qualquer outro estranhamento que caso se possa ter é francamente diluível pela alta qualidade desta história.

Quem melhor conhece a obra me diz que é uma versão d'Os Cantos de Cantuária (Geoffrey Chaucer, sec. XIV), com a mesma estrutura de uma história sendo composta pelo contar dos personagens de suas próprias histórias pessoais. O que não é de se admirar, dado a formação acadêmica do autor ser de Letras. Uma outra obra dele, a duologia Illium e Olympus é a respeito de uma reencenação da Guerra de Tróia em Marte, por inteligências artificiais.

Como podemos ver, com Simmons nada é simples. 

Hyperion, portanto, é composto de uma história base que leva a bojo as histórias de seis dos sete protagonistas, em peregrinação para o planeta-título. Na medida em que a peregrinação ocorre, os personagens contam suas histórias pessoais e porque estão lá, para contar o tempo e talvez conseguir um insight de toda uma situação que os envolve, recheada de mistérios.

Na medida em que contam, percebem que, direta ou indiretamente, todos estão relacionados com  o remoto Hyperion e seu mais conhecido habitante, um monstro mitológico conhecido por empalar suas vítimas. Há todo um culto organizado por seres humanos ao redor do mito, que dadas horas lembra algo tirado de Hellraiser.

O futuro de Hyperion se passa no ano 2.732 (uma data modesta, perto de algumas antecipações mais hiperbólicas da ficção científica), e a Humanidade se espalha pelas estrelas sob sua Hegemonia, em centenas de mundos conectados por tecnologia de portais (chamada teleprojeção), também fazendo uso de naves subluz (com efeitos de dilatação do tempo contados como peso para a vida dos personagens).

Não é, apesar disso, um futuro gentil. Diferenças sociais abismais existem, potencializadas pela própria tecnologia, com ultra-ricos dispondo de casas em diversos mundos interligadas via portais, e massas de miseráveis vivendo de limpar canais de esgoto industrial como o descrito no planeta Portão Celestial, ou trabalhadores e operários vivendo em colmeias cinzentas em um ambiente esmagador como Lusus. Além disso, é citada a baixa alfabetização dessa mesma Humanidade pelas estrelas, e a singela falta da vontade de ler, como fica explícito na história contada pelo poeta: não bastasse, ainda uma parte da Humanidade, especializando-se em ambientes zero g, destacou-se e fugiu pelas estrelas, ameaçando voltar como uma força hostil contra a Hegemonia do Homem. Ainda, na última história, entendemos porque o espaço conhecido só apresenta relíquias alienígenas antigas ou o Homo sapiens: a 'hegemonia' assim é, pois descarta qualquer possibilidade de vida inteligente, antecipando uma concorrência.

A dupla duologia.

As histórias apresentadas se desenrolam bem, mesmo em sua complexidade, com focos em suas vidas pessoais alternando com as grandes questões e decisões que podem "abalar a galáxia", para ficar em um velho e preferido clichê, enquanto paisagens de diversos mundos são apresentadas, pelas memórias contadas ou durante a viagem dos peregrinos. Uma adaptação em minisérie seria realmente fascinante, pelos resultados.

No processo da escrita, vemos a qualidade do autor ao dar uma voz diferente (pessoal ou onisciente) para cada uma das histórias contadas, e aqui temos qualquer desenvolvimento de personagens: nesse primeiro volume, ao menos, ainda não li a sequência. Nenhum deles é particularmente simpático, salvo o professor, com o resto oscilando entre o mecânico e o insuportável.

As histórias pessoais são:

A história do sacerdote: "A fábula do homem e do deus"

Acompanhando a história prévia de um missionário, com seus pecados a pagar e sua crise de fé, a história contada por outro religioso que o conheceu, o padre Hoyt, bem descreve o afastar-se gradativo da civilização, mesmo uma com traços bem desagradáveis, cada vez mais dentro de lugares selvagens e inóspitos, exatamente como um evangelizador veria - apesar da conversão não ser a meta do missionário citado.

Por isso, essa história me fez lembrar de O Coração das Trevas (1899), em que se adentrava em um território cada vez mais longe, desconhecido e ameaçador a quem fosse de fora, como se fosse um personagem vivo. Ainda, as descrições das ruínas de tempos perdidos do Labirinto de Hyperion, assim como sua difícil acessibilidade, evoca facilmente as cidades perdidas de H. P. Lovecraft.

A relação com o povo Bikura de certa forma lembra o povo Pirahã, em seu isolacionismo e simplicidade (e com um missionário que saiu de seu contato com uma crise de fé), o que torna o contato pela linguagem outro tipo de desafio. Da mesma forma, os Bikuras são uma espécie de "neo-tribo": seres humanos que, no futuro, perdem o contato com a civilização tecnológica originária e forçosamente se readaptam a um estilo de vida tribal, ainda que à sua própria maneira (o "Povo Científico" de Estrelas, o meu destino sendo um exemplo). 

A história do soldado: "Os amantes da guerra"

A versatilidade de Simmons é vista logo no contraste aqui com a primeira história, melancólica e biográfica: agora vemos um thriller de sobrevivência sci-fi-militar taquicárdico, enquanto que a força hostil dos desterros é apresentada, assim como algum contexto. Poderia ser facilmente uma história no cinema estrelando, digamos, Tom Cruise ou qualquer outro 'action hero' que se queira elencar: o que significa que não há tempo para reflexão aqui, o oposto da história anterior. Há o mistério, entretanto, com que o soldado - cel. Fedmahn Kassad - se depara: a presença fantasmagórica de uma mulher nas simulações de batalha que, no final, levam ao monstro de Hyperion, e um pouco de seus planos.

Fan-arte inspirada. “The Lord and the Colonel”, por Alex Ries (fonte: Reddit

A história do poeta: "Cantos de Hyperion"

Aqui, temos outro depoimento pessoal, ainda que em uma história radicalmente diferente da do sacerdote, e talvez a que mais ofereça insights do cenário do romance. O poeta Martin Silenus, detestável até por seus companheiros de viagem, é uma extrapolação de ser escritor - especialmente quando quase ninguém lê -, eternamente em crise, seja porque não consegue público para sua 'alta literatura', enquanto que contratos milionários que lhe sustentam o luxo que tanto aprecia obrigam-no a escrever ficção rasa e escapista; seja porque luta para reencontrar sua musa: e quando a reencontra, tanto pior para todos.

O bônus aqui é um personagem secundário: há como não simpatizar pelo Triste Rei Billy e sua Cidade de Poetas.

A história do acadêmico: "O sabor do rio Lete é amargo"

O rio Lete, um dos rios do Inferno na mitologia grega, é o rio do qual as almas humanas, antes de renascerem, devem beber as águas, para que se esqueça da vida anterior. A citação do rio é o que ocorre com a filha de Sal Weintraub, como contado por este, É, disparado, a mais humana das histórias, 

Arqueóloga, a personagem vasculha as Tumbas Temporais de Hyperion, ruínas de sabe-se lá quando, para ser afetada de maneira única por suas 'marés temporais', revertendo sua idade rumo a seu nascimento, dia após dia. A agonia dos seus é desenrolada pela narrativa. E a peregrinação de seu pai, que tem nas mãos um bebê, é o que lhe resta como esperança - mesmo que em busca de um deus terrível.

A história da detetive: "O longo adeus"

Uma das mais famosas histórias de detetive dá o nome a este segmento, e aqui temos uma história seca, noir e cyberpunk para contar a participação das inteligências artificiais do cenário, especialmente seus esquemas velados: tudo começa com uma bela cliente - na verdade, um belo cliente - entrando pela porta do escritório chinelo de Brawne Lamia, investigadora particular, sem poder contar com a polícia, pedindo para que investigue um assassinato: o dele próprio.

A história do cônsul: "a história de Siri"

A ação da Hegemonia e uma pequena lição sobre como colonialismo funciona está nessa história, assim como as consequências da resistência armada. Ao mesmo tempo, ouvi ecos de Canções da Terra Distante, o último romance de Arthur C. Clarke (pitaqueado aqui), com longas despedidas entre amantes, separados pela dilatação do tempo por velocidades relativísticas. A dualidade - e oposição - dos mundos originais de ambos é uma resposta à proposta "E se Romeu e Julieta houvessem sobrevivido?".

***

Outra evidência da qualidade de Hyperion é que, apesar de recheado de referências literárias (o poeta inglês John Keats é paixão do autor), não conhecê-las não estraga a leitura: escritores, com suas pesquisas elaboradas, têm muito a aprender aqui.

Hyperion é seguido por Fall of Hyperion, Endymion e Rise of Endymion (trabalham como duas duologias), que estão ainda sem tradução publicada. Tomara que o primeiro venda o suficiente para a editora se interessar em lançar as sequências: é lastimável que, por exemplo, Anno Dracula - pela mesma editora - tenha ficado só no romance de estreia, por este exato motivo.

Recomendo altamente. Imperdível.

Hyperion
560 p
Aleph

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Fim da Pará.Grafo

 Em setembro do ano passado, a Pará.Grafo editora fechou as portas. Seu website não existe mais, e seu instagram não tem sido mais atualizado. Uma pena. A (ótima) antologia Terror na Amazônia conta com um conto conjunto meu e minha queridíssima Ana Carina Santos. 

Fará falta.

A Ameaça do Contínuo - Intempol 2

Muitíssimo feliz de ter meu conto 'A Ameaça do Contínuo' adaptado pelo próprio Octavio Aragão e desenhado por André Flauzino para o volume 2 da antologia em quadrinhos da Intempol, projeto que tenho uma relação desde os primórdios, em fins de 90...

AadC tinha sido publicado somente no antigo site da "Empresa", infelizmente extinto há muito tempo, é muito bom vê-lo com uma segunda chance. :)

O álbum está previsto para este ano.




segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Dollhouse

Tipologia desconjuntada: antes de virar clichê em capa de livros, creio: mas aqui, está no tema.

Aviso: sujeito a SPOILERS.

 Dollhouse (2009) foi uma série menos conhecida, das criadas por Joss Whedon. Ele já tinha feito seus mega-sucessos Buffy e Angel, fracassado gloriosamente em Firefly, ainda estava a 3 anos de despontar como nerd god no primeiro filme d'Os Vingadores - e ainda não sabíamos de seu comportamento extremamente problemático em ambiente de trabalho.

A essa altura, Dollhouse é uma série que, para ele, talvez seja melhor continuar a ser esquecida: a premissa é a de uma organização secreta com tecnologia de ponta que, através de lavagem cerebral futurista adormece a personalidade de adultos e cola em seus cérebros quase vazios novas personalidades, com habilidades próprias, ou por vezes um remendão de ambos os conceitos, para o melhor desempenho. Desempenho em...? Pois é. Para o que quer que um cliente que muito bem pague assim precise.

Ou seja, esses 'frankensteins cognitivos' agem como desde médicos, ladrões sofisticados, cantores ou artistas marciais, até escorts ou namorada/os por um fim de semana, para depois serem devolvidos e terem as memórias apagadas - e aqui está o óbvio problema do conceito, desde antes que se mostre a primeira cena de Eliza Dushku na cama com alguém que, em coisa de um ou dois dias, ela jamais irá se lembrar do que, onde e com quem: na Dollhouse, eles não estão em um papel, eles são o papel que lhes é imposto. A presença de bonecOs, além de bonecas, não convence muito, ao meu ver, em caso de uma alegada equiparação: prostituição masculina, via de regra, é muito menos debatida na sociedade do que a feminina (e nem precisamos mencionar prostituição gay).

No final das contas, é uma série não só sobre exploração sexual de pessoas vulneráveis, mas sobretudo, de controle: cabe a leitura de um artigo do Mary Sue sobre como Dollhouse é a visão discriminatória que Whedon tem a respeito de mulheres, debaixo de uma capa de progressismo. Me é difícil discordar.

Do ponto de vista da Ficção Científica, a ideia do espião sem memórias que tem um jeito de compensar com habilidades que jamais teve não é novidade desde, ao menos, O Super Espião. Conceitos similares podem ser vistos em John Doe e mesmo na comédia Chuck (a impressão que tenho é que acabaram derivando do conceito da reunião de talentos geniais com personalidades e backgrounds singulares para uma dada missão, agora é uma espécie de "exército de um homem só" de habilidades múltiplas). 

A ideia de personalidades vestindo corpos que não são seus também é uma noção manjada, mais recentemente vista em Carbono Alterado (livro original de 2003; cuja ideia de estocagem em mídia física de memórias e personalidades reaproveitadas em um corpo posterior aparece em Dollhouse no ep. 1x10). Na recente Severance, a ideia da separação da vida no trabalho da de fora do trabalho é elevada a um novo patamar. A escravização/servidão de seres humanos de maneiras futuristas, vistas em filmes como A Ilha (clones para peças sobressalentes), o que faz lembrar a HQ O Mundo de Krypton (a versão de Byrne & Mignola, 1987-1988), em que clones eram mantidos inconscientes, também como depósitos de peças sobressalentes para seus originais, em caso de necessidade médica - em uma sociedade avançada e hedonista.

... mas não é novidade, mesmo...

Claro que a Dollhouse em si não é, possivelmente, uma organização 'do Bem', mas também não é apenas uma startup de cafetinagem high-tech. Conspirações com motivos sombrios são hit desde, pelo menos, Arquivo X

Os eps tendem a sempre dar um motivo, aleatório ou não, para a programação instalada nos 'Ativos' dar um pifa, especialmente em Echo, a protagonista de Dushku. Apesar da repetição da premissa, isso é uma forma de progredir o próprio plot, especialmente dado o número reduzido de episódios (já faziam 12 por temporada, na época, logo após a greve de roteiristas de '07-'08). 

Cabe dizer que tecnologias inventadas em FC não raro se tornam fonte de episódios inteiros, quando começam a funcionar de maneiras inesperadas, uma vez determinados - para o público, especialmente - os parâmetros sob os quais elas devem operar: ou, deveriam. A franquia de Star Trek tem seu quinhão de problemas com o teletransportador e, claro, o holodeck, para ficarmos em um exemplo manjado - inclusive, um sobre como não usar este tipo de artifício. 

Em Dollhouse, o imprevisto é sobre a capacidade de absorver e esquecer as memórias e personalidades implantadas, além de variações que não necessariamente os personagens desenvolvedores não conhecem, o que é válido, já que a tecnologia é inteiramente nova: e brincar sobre variações imprevisíveis de uma tecnologia inexistente não é novidade desde Isaac Asimov e suas 3 Leis da Robótica.

A primeira temporada serve para então apresentar os personagens, a trama, a tecnologia de impressão mental e seus imprevistos, episódio por episódio, sendo os imprevistos parte da fórmula do 'caso/monstro da semana', como em tantas outras séries. O finale quebra com o formato, jogando a trama 10 anos no futuro, no distante ano de 2019 (pois é...) e o elenco quase só com outros personagens, apenas para o episódio. Muita coisa deu errado até então, com a sociedade reduzida a escombros, uma vez que aquela tecnologia desenvolvida para a Dollhouse saiu do controle (eis uma cronologia do universo da série).

E tome de causar impressões...

A segunda temporada começa no tempo normal, com Echo/Caroline (Dushku) ciente de cada impressão de personalidade que ela já recebeu (após eventos perto do fim da temporada passada), após passar a 1a. temporada dando indícios que ela se esquecia cada vez menos dos ocorridos de suas identidades temporárias. 

Os personagens ao redor ganham mais espaço para serem desenvolvidos, mostrando lados mais humanos do que como foram estabelecidos na primeira, e o alvo é a matriz da conspiração, a corporação Rossum (uma referência assumida), por trás das Dollhouses. Goste ou não, há algumas reviravoltas aqui, é bom se preparar. Os cenários se diversificam mais, de situações ou localidades (a Dollhouse de Washington aparece, e os planos para a futura 23a. em Dubai são parte de uma trama): destaque para o episódio 2x10, "The Attic", onde finalmente tão citado e temido "Sótão" da casa é mostrado, sendo uma espécie de 'The Matrix' mas feito da maneira certa, e que ainda remete ao final da 1a. temporada.

Os dilemas apresentados ganham vários contornos, dentro das limitações de tempo por episódio/temporada: mas para o final da segunda (que se firma com o finale da primeira), temos a discussão sobre quem teria mais direitos de se ser: uma personalidade original, ou outra desenvolvida com o tempo, após passar pelas remodelagens impressas - algo nem tão diferente de Douglas Quaid de O Vingador do Futuro (1990).

Problemas no deck de voo da Galáctica...

Múltiplas interpretações pelo mesmo ator ou atriz sempre são divertidos de ver, e se o trabalho é bom, de se admirar, apostando na versatilidade de suas atuações. Os exemplos são vários, mas só pra citar dois de cabeça, Eddie Murphy vira e mexe faz isso em um de seus filmes, e Tatiana Maslany impressionou muito bem em Orphan Black. O elenco de 'Ativos' tem a oportunidade de fazer isto várias vezes e, francamente, achei divertido comparar. Falando no elenco, vários rostos com quem Whedon trabalha surgem, além de outros conhecidos, especialmente se você assistia séries da Fox daquele período.


Rostos whedonianos se reencontrando.

Conclusões finais? A série merecia mais. Merecia mais tempo para desenrolar e deixar um pouco mais claro os desenvolvimentos da tecnologia de impressão de personalidades, assim como toda a trama em si. Merecia ter seus atores com melhor disposição para trabalhar o alcance de papeis, por exemplo. Merecia, também, um pensar mais cuidadoso quanto às questões acima colocadas - em 2009 certos simancóis talvez já devessem estar melhor tomados.