terça-feira, 4 de maio de 2010

Anno Dracula


Havendo finalmente lido o romance de Bram Stoker, logo na entrada abaixo, peguei para ler o livro que me motivou a comprá-lo, um excelente lançamento da Editora Aleph.

A Aleph, para quem não lembra ou conheceu, anda fazendo as vezes da finada Editora Hemus, que nos anos 60 publicou muito material de ficção-científica, além até do feijão com arroz Asimov-Clarke de sempre. Mas infelizmente fechou, e é cada vez mais raro encontrar seus livros nos sebos da vida. É, para o fã, um serviço de utilidade pública!

Então, vamos lá: Anno Dracula (1992), por Kim Newman, é o que é chamado Ficção Alternativa: sobre a obra de outra pessoa, você cria a sua, com personagens de outros em novas situações propostas pelo novo autor. O caso mais conhecido é o da Liga Extraordinária, péssima adaptação cinematográfica de A Liga dos Cavalheiros Extraordinários, em que diversos personagens criados no Século XIX por diferentes autores são reunidos por suas experiências e capacidades únicas para lutar contra um grande perigo à Coroa e ao Império Britânico. Enquanto o filme pode se sustentar, se você não conhecer a história original, como algo maluquete-divertidinho que você esquece em cinco minutos; a HQ original é estupenda, figurando personagens como Alan Quartermain, Mina Harker, Capitão Nemo, etc.; usando como base seus contextos originais, mas que isto não atrapalhe o novo que é criado.

Anno Dracula parte de um princípio semelhante, pegando a história original de Bram Stoker e partindo do pressuposto de que, no confronto no hospício em Carfax, em que ele é pego sugando o sangue de Mina Harker, ele não foge, mas enfrenta e varre o chão com os heróis, morrendo Quincey Morris e Johnathan Harker no processo. Daí para fora, temos a ascensão social do Príncipe da Valáquia até se casar com a Rainha Vitória - e o Império Britânico agora está sob nova direção: os empalamentos públicos estão ai para mostrar isto.

Para montar seu novo governo, Drácula nomeia diversos vampiros para lugares-chave e cargos de comando; e começa o desfile de nomes conhecidos (ou nem tanto): o primeiro-ministro da Inglaterra, por exemplo, é o personagem de John William Polidori em seu romance de 1816 The Vampyr, um dos primeiros vampiros literários em língua inglesa, bem antes do romance de Bram Stoker. Para sua terrível Guarda Carpatiana, quatro outros vampiros são resgatados de obras diferentes e, munidos de brutalidade, presas, espadas e armaduras, são re-introduzidos nesta obra como sendo velhos soldados a comando de Drácula, ainda contra os otomanos.

A edição brasileira, aliás, conta com um compêndio onde cada personagem é identificado com sua obra e autores originais, e os personagens históricos recebem uma breve biografia. Como O. Aragão aponta em seu ótimo pósfácio, Newman não se prende à literatura somente, mas lançando mão de personagens ainda de televisão e cinema.

Não conhecer estes personagens, ou totalmente desconhecer literatura vitoriana, entretanto, não diminui o prazer da leitura. Na verdade, Newman põe em primeiro plano seus próprios personagens, utilizados antes e depois em outros de seus livros, especialmente Charles Beauregard e Mademoiselle Geneviéve Dieudonné (esta, recorrente em obras do autor).

Aliás... talvez esteja o único problema a mais que vi no livro: assim como Quentin Tarantino faz em seus filmes, o excesso de referências parece antes servir a um desfile de cultura da área focalizada antes que realmente sirva ao desenrolar ou ao ambientar da história em si. Como já me definiram, é a situação-piscadinha que o autor faz ao leitor/espectador: "Olha, sacaram quem é esse cara? Hein, hein? É daquele livro, naquela hora! *piscadinha, piscadinha*"

Creio que a tentação seja grande demais, às vezes, para um autor que tanto se apaixona sobre o que tanto pesquisa resistir. Mas isso não compromete a fluência da leitura, em hipótese alguma -- aliás, talvez seja esse o principal ponto de diferença de literatura vitoriana: ritmo.

Newman não poupa esforços em mostrar uma nova sociedade londrina de fim de Século XIX. Em algum dado momento não especificado desde os três anos que separam Drácula de Anno Dracula, a existência de vampiros é dada como factual, apenas outro fenômeno natural, por mais estranho e peculiar que seja: ao mesmo tempo em que, rapidamente, os vampiros vão se tornando a classe superior, ainda há vampiros em todas as situações financeiras e sociais, e a vida eterna não exatamente mudou para melhor as condições destas pessoas. O ato de morder e sugar o sangue virou mais uma ferramenta de prazeres, incluída na prática da prostituição. Não há exatamente o glamour que certas obras ou visões podem dar do fenômeno do vampirismo.

É uma Londres que não se apóia, para seus conflitos, apenas na dualidade vampiros x quentes, mas também é a Londres dos anarquistas, socialistas, republicanos de modo geral, descontentes e, consequentemente, perseguidos do novo regime. Recorte deste mundo, e para onde a ação vira e mexe corre, é o Toynbee Hall, o que talvez em termos de Brasil de hoje em dia fosse um centro voltado para questões de cidadania: ao mesmo tempo que tem uma ala médica - é uma cidade tão doente que mesmo seus vampiros são doentes -, há salas para aulas populares e palestras. Nele encontramos o primeiro personagem do romance original, o sobrevivente Dr. John Seward, pretendente de Lucy Westenra e diretor do hospício onde Renfield estava internado. É agora o diretor do Toynbee Hall.

A repaginação dos personagens originais de Bram Stoker que aparecem, é... excelente, no caso de Seward, nada elogiosa, no caso do bom Arthur Holmwood, um pouco decepcionante, no caso de Mina e... surpreendente, no caso de Lucy. ;-) Leiam, e entenderão.

Do formato epistolar do livro original, aliás, temos apenas um único diário, justamente o de Seward, onde vamos nos dando conta de sua loucura gradativa, e de todos os fantasmas do passado que ele não consegue se livrar. As passagens de seu diário acabaram se tornando das minhas favoritas, em um livro só com grandes passagens... e ainda: é também um livro, como no romance original, sobre o homem que não está lá. Sua influência distante, desta vez, é brutalmente evidente.

Assim como no romance original, Anno Dracula nos dá diversos enfoques do problema do vampirismo: embora os diários e cartas dos personagens de Drácula todos representassem facetas de um mesmo problema, em Anno Dracula temos esta sociedade, acima descrita, vista por diversos homens e mulheres, quentes ou frios, em qualquer posição de poder, minando a idéia de que o vampirismo em si é somente um, senão O, problema.

Ao mesmo tempo, a atenção desta sociedade tão caótica, com tantos pareceres, se vê circulando ao redor de um único evento: o assassinato em série de prostitutas vampiras - sim, Jack o Estripador é um caçador de vampiros. Isto é apresentado logo de cara no primeiro capítulo, disponível aqui. Sensacional. E seus crimes vão agitando cada vez mais uma Londres prestes a explodir, devido às suas implicações políticas que nem o criminoso tem consciência.

Os vampiros aqui são tratados de forma "acessível", digamos. Não são seres sobrenaturais, há a possibilidade de entendê-los sob a luz da ciência (embora a questão dos espelhos seja uma pergunta embaraçosa). Nas divagações de Seward, constantemente ele se queixa da teimosia de Van Helsing em se apegar aos mitos folclóricos de outrora. É um desdobramento interessante, na minha opinião, exatamente da aproximação cientificista do problema sobrenatural, que até pus na resenha abaixo. Bom ver que Newman não ignorou isto.

Além do espectro mais amplo, o político e o social, o vampirismo está como agente de transformação o tempo todo, e não somente dos efeitos especiais do estado dos mortos-vivos ou licantropia: mas transformar-se em de quem se absorve o sangue, por exemplo. Ou de quem se convive, de quem se mira como exemplo... não de maneira geral ou literal, mas como força transformadora de uma personalidade, embora nem todos percebam. Isso foi um toque genial por parte do autor.

Anno Dracula tem ainda três continuações, The Bloody Red Baron (I Guerra Mundial), Dracula Cha Cha Cha (em 1959) e Johnny Alucard, fazendo parte de seu próprio conjunto de obra. Espero que algum dia saia no Brasil.

Um comentário:

Leonardo Peixoto disse...

Precisamos de uma nova Editora Hemus !