sábado, 16 de março de 2024

Autorias BR na gringa... :)

Em um curto período de tempo, dois eventos legais no campo da literatura fantástica brasileira: os autores Renan Bernardo (seu site aqui) e Clara Madrigano conseguiram destaque no mercado americano. Ele, ao ser indicado na categoria Melhor Noveleta do Prêmio Nebula deste ano, um dos maiores prêmios do campo. Ela, conseguindo ser publicada na revista de contos Fantasy & Science Fiction (já saíra na Clarkesworld), e como destaque da edição.


Parabéns aos dois, espero ver mais disso ocorrendo - com eles, e com mais autorias brasileiras, assim como do dito Sul Global! 


quinta-feira, 7 de março de 2024

A Curva do Sonho

Deliciosamente PKDickiano.

AVISO: SPOILERS A SEGUIR

A Curva do Sonho (The Lathe of Heaven, 1971), de Ursula K. Le Guin, foi premiado com o Locus (1972) e indicado ao Hugo ('72) e Nebula ('71). 

No distante ano de 2004, em um mundo de escassez de recursos dado a superpopulação; George Orr é acometido de sonhos capazes de transformar a realidade. Temendo sempre o próximo sonho e uma mudança para (ainda) pior, ele infringe a lei tomando mais remédios do que uma prescrição legal permite, e, após uma overdose, vai parar em tratamento de sonhos. Lá conhece o Dr. William Haber, especialista no assunto, com uma tecnologia adaptada para influenciar sonhos negativos. A princípio Haber inevitavelmente duvida do que Orr alega sofrer, mas após lhe induzir e monitorar um sonho, ele próprio testemunha a mudança na paisagem ao redor, tendo em mente agora duas versões conflitantes do mundo-como-ele-sempre-foi. 

Não demora para Haber entender que a chance para um mundo melhor - e uma certa dose de benefício próprio - está à mão, e ele passa a usar as sessões de tratamento que Orr legalmente deve cumprir para alterar a realidade, conforme crê o que virá a ser para o bem geral. Mas para cada nova melhoria, um desastre adicional: a superpopulação "historicamente" é combatida com uma praga que matou bilhões; o fim das doenças gerou uma mentalidade eugência; o fim da guerra entre os povos se dá com uma invasão espacial; e o fim do racismo significa o fim das identidades étnicas. Mas, na cabeça de Haber, a próxima mudança sempre será melhor - assim como maior será sua própria importância para o mundo. 

Filosofias entram em contraste na narrativa, especialmente visões de mundo taoísta versus positivista: o render-se às infinitas possibilidades do mundo versus a ânsia míope em melhorá-lo, não indo além de um controle extremamente limitado de uma situação. O artigo na wiki ainda menciona crítica a psicologia behaviorista quanto o utilitarianismo.

Capa da edição original.

As descrições de cenário primam pelo estabelecimento em poucas páginas, entre um sonho e o próximo. Mas tudo gira ao redor da cidade de Portland, no Oregon (EUA), indo desde uma versão com superpopulação, poluição e miséria até algo com poucas centenas de milhares de habitantes, com ecossistema recuperado, e dotada agora de uma importância global. Alguns marcos na paisagem são citados como referência, entre estilos arquitetônicos e necessidades urbanística que permanecem, mudam ou somem - mesmo o onipresente Monte Hood, vulcão a uma certa distância de Portland, pode ser avistado ou não, entrar em atividade ou continuar adormecido, de acordo com o momento. Nessas poucas páginas, Le Guin dá a vivacidade necessária para se entender o alcance do poder, o novo estilo presente e a miopia que se segue dos proponentes de cada novo mundo.

James Caan: boa escolha para o dr. Haber (adaptação de 2002).

O contraste entre os antagonistas é um dos pontos altos da trama. George Orr e Willam Haber são marcantemente opostos. Haber é um tipo grande e espaçoso, e além de extrovertido, é cheio de assertividades. Orr é tímido, com a personalidade 'certa' para se ter um poder tão terrível como aquele, pois, antes de mais nada, não quer tê-lo. Orr é dito ter a personalidade mais mediana já encontrada, pouco dado a arroubos ou frieza: entretanto, é forte para não se entregar à tentação de construir um mundo melhor, tão ambicionada por Haber. Le Guin explora bem as diferenças entre ambos, a cada cena que interagem, dando um domínio total do médico sobre seu paciente - que, no entanto, resiste como pode.

A terceira personagem de destaque é Heather Lelache, que me pareceu um pouco deslocada. Ela também é testemunha da mudança dos sonhos de Orr, e a princípio havia entrado na trama para - impressão minha, ao menos - ajudar Orr a se opor contra Haber, uma vez que ele sempre é descrito muito como passivo e ela, dotada de uma agressividade nata. Mas seu papel fica como interesse romântico de Orr, sem apitar maiores coisas no final das contas. Mesmo em dado momento, quando ela passa a nunca existir, Orr se mantém estável e controlado, como sempre se indicou como ele é: entretanto, isso não exatamente ajuda a importância de Lelache para a trama... ao menos, ao meu ver.

A história ganhou 2 adaptações para TV (1980 e 2002) e uma para o teatro.

Esse é um livro que lembra muito as histórias típicas de Philip K. Dick, e isto é proposital, sendo na verdade um tributo à uma velha amizade. 

Permitindo-me um pouco de especulação da minha parte... me parece que a crítica ao positivismo afeta uma visão tradicional vista na FC, quando alude ao progresso tecnológico em si a chance de redenção da sociedade: por tabela, uma crítica à própria FC, então tradicionalmente falando. Seria interessante saber se essa crítica encontrou eco ou mesmo fez vestir algumas carapuças...

The Late of Heaven foi já traduzido para o português (nos dois lados do Atlântico) algumas vezes, e Do Outro Lado do Sonhos gerou esta resenha por Marcello S. Branco. 

Parabéns à Morro Branco por mais essa.

A Curva do Sonho
224 p
Morro Branco

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Hyperion

Hyperion, de Dan Simmons: antes tarde do que nunca!

 AVISO: SPOILERS ABAIXO

Recém-publicado pela Aleph, este clássico de 1990 inédito em terras brasis - ainda, terras lusófonas - passou batido pelos nossos radares por tempo demais. Muitos aclamam como um dos grandes clássicos da literatura de ficção científica, merecendo seu lugar junto a sagas como Fundação ou Duna.

A tradução pode ser vista como sendo problemática, do título do livro - o titã Hipérion é velho conhecido da língua portuguesa - até a escolha do nome do grande antagonista da trama (até aí, Artemis - pitaqueado aqui - continuou sem acento na capa de sua edição BR pela Arqueiro: mais discreto, porém não menos estranho. Coisas do 'reforço de marca'?). Mas qualquer outro estranhamento que caso se possa ter é francamente diluível pela alta qualidade desta história.

Quem melhor conhece a obra me diz que é uma versão d'Os Cantos de Cantuária (Geoffrey Chaucer, sec. XIV), com a mesma estrutura de uma história sendo composta pelo contar dos personagens de suas próprias histórias pessoais. O que não é de se admirar, dado a formação acadêmica do autor ser de Letras. Uma outra obra dele, a duologia Illium e Olympus é a respeito de uma reencenação da Guerra de Tróia em Marte, por inteligências artificiais.

Como podemos ver, com Simmons nada é simples. 

Hyperion, portanto, é composto de uma história base que leva a bojo as histórias de seis dos sete protagonistas, em peregrinação para o planeta-título. Na medida em que a peregrinação ocorre, os personagens contam suas histórias pessoais e porque estão lá, para contar o tempo e talvez conseguir um insight de toda uma situação que os envolve, recheada de mistérios.

Na medida em que contam, percebem que, direta ou indiretamente, todos estão relacionados com  o remoto Hyperion e seu mais conhecido habitante, um monstro mitológico conhecido por empalar suas vítimas. Há todo um culto organizado por seres humanos ao redor do mito, que dadas horas lembra algo tirado de Hellraiser.

O futuro de Hyperion se passa no ano 2.732 (uma data modesta, perto de algumas antecipações mais hiperbólicas da ficção científica), e a Humanidade se espalha pelas estrelas sob sua Hegemonia, em centenas de mundos conectados por tecnologia de portais (chamada teleprojeção), também fazendo uso de naves subluz (com efeitos de dilatação do tempo contados como peso para a vida dos personagens).

Não é, apesar disso, um futuro gentil. Diferenças sociais abismais existem, potencializadas pela própria tecnologia, com ultra-ricos dispondo de casas em diversos mundos interligadas via portais, e massas de miseráveis vivendo de limpar canais de esgoto industrial como o descrito no planeta Portão Celestial, ou trabalhadores e operários vivendo em colmeias cinzentas em um ambiente esmagador como Lusus. Além disso, é citada a baixa alfabetização dessa mesma Humanidade pelas estrelas, e a singela falta da vontade de ler, como fica explícito na história contada pelo poeta: não bastasse, ainda uma parte da Humanidade, especializando-se em ambientes zero g, destacou-se e fugiu pelas estrelas, ameaçando voltar como uma força hostil contra a Hegemonia do Homem. Ainda, na última história, entendemos porque o espaço conhecido só apresenta relíquias alienígenas antigas ou o Homo sapiens: a 'hegemonia' assim é, pois descarta qualquer possibilidade de vida inteligente, antecipando uma concorrência.

A dupla duologia.

As histórias apresentadas se desenrolam bem, mesmo em sua complexidade, com focos em suas vidas pessoais alternando com as grandes questões e decisões que podem "abalar a galáxia", para ficar em um velho e preferido clichê, enquanto paisagens de diversos mundos são apresentadas, pelas memórias contadas ou durante a viagem dos peregrinos. Uma adaptação em minisérie seria realmente fascinante, pelos resultados.

No processo da escrita, vemos a qualidade do autor ao dar uma voz diferente (pessoal ou onisciente) para cada uma das histórias contadas, e aqui temos qualquer desenvolvimento de personagens: nesse primeiro volume, ao menos, ainda não li a sequência. Nenhum deles é particularmente simpático, salvo o professor, com o resto oscilando entre o mecânico e o insuportável.

As histórias pessoais são:

A história do sacerdote: "A fábula do homem e do deus"

Acompanhando a história prévia de um missionário, com seus pecados a pagar e sua crise de fé, a história contada por outro religioso que o conheceu, o padre Hoyt, bem descreve o afastar-se gradativo da civilização, mesmo uma com traços bem desagradáveis, cada vez mais dentro de lugares selvagens e inóspitos, exatamente como um evangelizador veria - apesar da conversão não ser a meta do missionário citado.

Por isso, essa história me fez lembrar de O Coração das Trevas (1899), em que se adentrava em um território cada vez mais longe, desconhecido e ameaçador a quem fosse de fora, como se fosse um personagem vivo. Ainda, as descrições das ruínas de tempos perdidos do Labirinto de Hyperion, assim como sua difícil acessibilidade, evoca facilmente as cidades perdidas de H. P. Lovecraft.

A relação com o povo Bikura de certa forma lembra o povo Pirahã, em seu isolacionismo e simplicidade (e com um missionário que saiu de seu contato com uma crise de fé), o que torna o contato pela linguagem outro tipo de desafio. Da mesma forma, os Bikuras são uma espécie de "neo-tribo": seres humanos que, no futuro, perdem o contato com a civilização tecnológica originária e forçosamente se readaptam a um estilo de vida tribal, ainda que à sua própria maneira (o "Povo Científico" de Estrelas, o meu destino sendo um exemplo). 

A história do soldado: "Os amantes da guerra"

A versatilidade de Simmons é vista logo no contraste aqui com a primeira história, melancólica e biográfica: agora vemos um thriller de sobrevivência sci-fi-militar taquicárdico, enquanto que a força hostil dos desterros é apresentada, assim como algum contexto. Poderia ser facilmente uma história no cinema estrelando, digamos, Tom Cruise ou qualquer outro 'action hero' que se queira elencar: o que significa que não há tempo para reflexão aqui, o oposto da história anterior. Há o mistério, entretanto, com que o soldado - cel. Fedmahn Kassad - se depara: a presença fantasmagórica de uma mulher nas simulações de batalha que, no final, levam ao monstro de Hyperion, e um pouco de seus planos.

Fan-arte inspirada. “The Lord and the Colonel”, por Alex Ries (fonte: Reddit

A história do poeta: "Cantos de Hyperion"

Aqui, temos outro depoimento pessoal, ainda que em uma história radicalmente diferente da do sacerdote, e talvez a que mais ofereça insights do cenário do romance. O poeta Martin Silenus, detestável até por seus companheiros de viagem, é uma extrapolação de ser escritor - especialmente quando quase ninguém lê -, eternamente em crise, seja porque não consegue público para sua 'alta literatura', enquanto que contratos milionários que lhe sustentam o luxo que tanto aprecia obrigam-no a escrever ficção rasa e escapista; seja porque luta para reencontrar sua musa: e quando a reencontra, tanto pior para todos.

O bônus aqui é um personagem secundário: há como não simpatizar pelo Triste Rei Billy e sua Cidade de Poetas.

A história do acadêmico: "O sabor do rio Lete é amargo"

O rio Lete, um dos rios do Inferno na mitologia grega, é o rio do qual as almas humanas, antes de renascerem, devem beber as águas, para que se esqueça da vida anterior. A citação do rio é o que ocorre com a filha de Sal Weintraub, como contado por este, É, disparado, a mais humana das histórias, 

Arqueóloga, a personagem vasculha as Tumbas Temporais de Hyperion, ruínas de sabe-se lá quando, para ser afetada de maneira única por suas 'marés temporais', revertendo sua idade rumo a seu nascimento, dia após dia. A agonia dos seus é desenrolada pela narrativa. E a peregrinação de seu pai, que tem nas mãos um bebê, é o que lhe resta como esperança - mesmo que em busca de um deus terrível.

A história da detetive: "O longo adeus"

Uma das mais famosas histórias de detetive dá o nome a este segmento, e aqui temos uma história seca, noir e cyberpunk para contar a participação das inteligências artificiais do cenário, especialmente seus esquemas velados: tudo começa com uma bela cliente - na verdade, um belo cliente - entrando pela porta do escritório chinelo de Brawne Lamia, investigadora particular, sem poder contar com a polícia, pedindo para que investigue um assassinato: o dele próprio.

A história do cônsul: "a história de Siri"

A ação da Hegemonia e uma pequena lição sobre como colonialismo funciona está nessa história, assim como as consequências da resistência armada. Ao mesmo tempo, ouvi ecos de Canções da Terra Distante, o último romance de Arthur C. Clarke (pitaqueado aqui), com longas despedidas entre amantes, separados pela dilatação do tempo por velocidades relativísticas. A dualidade - e oposição - dos mundos originais de ambos é uma resposta à proposta "E se Romeu e Julieta houvessem sobrevivido?".

***

Outra evidência da qualidade de Hyperion é que, apesar de recheado de referências literárias (o poeta inglês John Keats é paixão do autor), não conhecê-las não estraga a leitura: escritores, com suas pesquisas elaboradas, têm muito a aprender aqui.

Hyperion é seguido por Fall of Hyperion, Endymion e Rise of Endymion (trabalham como duas duologias), que estão ainda sem tradução publicada. Tomara que o primeiro venda o suficiente para a editora se interessar em lançar as sequências: é lastimável que, por exemplo, Anno Dracula - pela mesma editora - tenha ficado só no romance de estreia, por este exato motivo.

Recomendo altamente. Imperdível.

Hyperion
560 p
Aleph

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Fim da Pará.Grafo

 Em setembro do ano passado, a Pará.Grafo editora fechou as portas. Seu website não existe mais, e seu instagram não tem sido mais atualizado. Uma pena. A (ótima) antologia Terror na Amazônia conta com um conto conjunto meu e minha queridíssima Ana Carina Santos. 

Fará falta.

A Ameaça do Contínuo - Intempol 2

Muitíssimo feliz de ter meu conto 'A Ameaça do Contínuo' adaptado pelo próprio Octavio Aragão e desenhado por André Flauzino para o volume 2 da antologia em quadrinhos da Intempol, projeto que tenho uma relação desde os primórdios, em fins de 90...

AadC tinha sido publicado somente no antigo site da "Empresa", infelizmente extinto há muito tempo, é muito bom vê-lo com uma segunda chance. :)

O álbum está previsto para este ano.




segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Dollhouse

Tipologia desconjuntada: antes de virar clichê em capa de livros, creio: mas aqui, está no tema.

Aviso: sujeito a SPOILERS.

 Dollhouse (2009) foi uma série menos conhecida, das criadas por Joss Whedon. Ele já tinha feito seus mega-sucessos Buffy e Angel, fracassado gloriosamente em Firefly, ainda estava a 3 anos de despontar como nerd god no primeiro filme d'Os Vingadores - e ainda não sabíamos de seu comportamento extremamente problemático em ambiente de trabalho.

A essa altura, Dollhouse é uma série que, para ele, talvez seja melhor continuar a ser esquecida: a premissa é a de uma organização secreta com tecnologia de ponta que, através de lavagem cerebral futurista adormece a personalidade de adultos e cola em seus cérebros quase vazios novas personalidades, com habilidades próprias, ou por vezes um remendão de ambos os conceitos, para o melhor desempenho. Desempenho em...? Pois é. Para o que quer que um cliente que muito bem pague assim precise.

Ou seja, esses 'frankensteins cognitivos' agem como desde médicos, ladrões sofisticados, cantores ou artistas marciais, até escorts ou namorada/os por um fim de semana, para depois serem devolvidos e terem as memórias apagadas - e aqui está o óbvio problema do conceito, desde antes que se mostre a primeira cena de Eliza Dushku na cama com alguém que, em coisa de um ou dois dias, ela jamais irá se lembrar do que, onde e com quem: na Dollhouse, eles não estão em um papel, eles são o papel que lhes é imposto. A presença de bonecOs, além de bonecas, não convence muito, ao meu ver, em caso de uma alegada equiparação: prostituição masculina, via de regra, é muito menos debatida na sociedade do que a feminina (e nem precisamos mencionar prostituição gay).

No final das contas, é uma série não só sobre exploração sexual de pessoas vulneráveis, mas sobretudo, de controle: cabe a leitura de um artigo do Mary Sue sobre como Dollhouse é a visão discriminatória que Whedon tem a respeito de mulheres, debaixo de uma capa de progressismo. Me é difícil discordar.

Do ponto de vista da Ficção Científica, a ideia do espião sem memórias que tem um jeito de compensar com habilidades que jamais teve não é novidade desde, ao menos, O Super Espião. Conceitos similares podem ser vistos em John Doe e mesmo na comédia Chuck (a impressão que tenho é que acabaram derivando do conceito da reunião de talentos geniais com personalidades e backgrounds singulares para uma dada missão, agora é uma espécie de "exército de um homem só" de habilidades múltiplas). 

A ideia de personalidades vestindo corpos que não são seus também é uma noção manjada, mais recentemente vista em Carbono Alterado (livro original de 2003; cuja ideia de estocagem em mídia física de memórias e personalidades reaproveitadas em um corpo posterior aparece em Dollhouse no ep. 1x10). Na recente Severance, a ideia da separação da vida no trabalho da de fora do trabalho é elevada a um novo patamar. A escravização/servidão de seres humanos de maneiras futuristas, vistas em filmes como A Ilha (clones para peças sobressalentes), o que faz lembrar a HQ O Mundo de Krypton (a versão de Byrne & Mignola, 1987-1988), em que clones eram mantidos inconscientes, também como depósitos de peças sobressalentes para seus originais, em caso de necessidade médica - em uma sociedade avançada e hedonista.

... mas não é novidade, mesmo...

Claro que a Dollhouse em si não é, possivelmente, uma organização 'do Bem', mas também não é apenas uma startup de cafetinagem high-tech. Conspirações com motivos sombrios são hit desde, pelo menos, Arquivo X

Os eps tendem a sempre dar um motivo, aleatório ou não, para a programação instalada nos 'Ativos' dar um pifa, especialmente em Echo, a protagonista de Dushku. Apesar da repetição da premissa, isso é uma forma de progredir o próprio plot, especialmente dado o número reduzido de episódios (já faziam 12 por temporada, na época, logo após a greve de roteiristas de '07-'08). 

Cabe dizer que tecnologias inventadas em FC não raro se tornam fonte de episódios inteiros, quando começam a funcionar de maneiras inesperadas, uma vez determinados - para o público, especialmente - os parâmetros sob os quais elas devem operar: ou, deveriam. A franquia de Star Trek tem seu quinhão de problemas com o teletransportador e, claro, o holodeck, para ficarmos em um exemplo manjado - inclusive, um sobre como não usar este tipo de artifício. 

Em Dollhouse, o imprevisto é sobre a capacidade de absorver e esquecer as memórias e personalidades implantadas, além de variações que não necessariamente os personagens desenvolvedores não conhecem, o que é válido, já que a tecnologia é inteiramente nova: e brincar sobre variações imprevisíveis de uma tecnologia inexistente não é novidade desde Isaac Asimov e suas 3 Leis da Robótica.

A primeira temporada serve para então apresentar os personagens, a trama, a tecnologia de impressão mental e seus imprevistos, episódio por episódio, sendo os imprevistos parte da fórmula do 'caso/monstro da semana', como em tantas outras séries. O finale quebra com o formato, jogando a trama 10 anos no futuro, no distante ano de 2019 (pois é...) e o elenco quase só com outros personagens, apenas para o episódio. Muita coisa deu errado até então, com a sociedade reduzida a escombros, uma vez que aquela tecnologia desenvolvida para a Dollhouse saiu do controle (eis uma cronologia do universo da série).

E tome de causar impressões...

A segunda temporada começa no tempo normal, com Echo/Caroline (Dushku) ciente de cada impressão de personalidade que ela já recebeu (após eventos perto do fim da temporada passada), após passar a 1a. temporada dando indícios que ela se esquecia cada vez menos dos ocorridos de suas identidades temporárias. 

Os personagens ao redor ganham mais espaço para serem desenvolvidos, mostrando lados mais humanos do que como foram estabelecidos na primeira, e o alvo é a matriz da conspiração, a corporação Rossum (uma referência assumida), por trás das Dollhouses. Goste ou não, há algumas reviravoltas aqui, é bom se preparar. Os cenários se diversificam mais, de situações ou localidades (a Dollhouse de Washington aparece, e os planos para a futura 23a. em Dubai são parte de uma trama): destaque para o episódio 2x10, "The Attic", onde finalmente tão citado e temido "Sótão" da casa é mostrado, sendo uma espécie de 'The Matrix' mas feito da maneira certa, e que ainda remete ao final da 1a. temporada.

Os dilemas apresentados ganham vários contornos, dentro das limitações de tempo por episódio/temporada: mas para o final da segunda (que se firma com o finale da primeira), temos a discussão sobre quem teria mais direitos de se ser: uma personalidade original, ou outra desenvolvida com o tempo, após passar pelas remodelagens impressas - algo nem tão diferente de Douglas Quaid de O Vingador do Futuro (1990).

Problemas no deck de voo da Galáctica...

Múltiplas interpretações pelo mesmo ator ou atriz sempre são divertidos de ver, e se o trabalho é bom, de se admirar, apostando na versatilidade de suas atuações. Os exemplos são vários, mas só pra citar dois de cabeça, Eddie Murphy vira e mexe faz isso em um de seus filmes, e Tatiana Maslany impressionou muito bem em Orphan Black. O elenco de 'Ativos' tem a oportunidade de fazer isto várias vezes e, francamente, achei divertido comparar. Falando no elenco, vários rostos com quem Whedon trabalha surgem, além de outros conhecidos, especialmente se você assistia séries da Fox daquele período.


Rostos whedonianos se reencontrando.

Conclusões finais? A série merecia mais. Merecia mais tempo para desenrolar e deixar um pouco mais claro os desenvolvimentos da tecnologia de impressão de personalidades, assim como toda a trama em si. Merecia ter seus atores com melhor disposição para trabalhar o alcance de papeis, por exemplo. Merecia, também, um pensar mais cuidadoso quanto às questões acima colocadas - em 2009 certos simancóis talvez já devessem estar melhor tomados.