terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Hyperion

Hyperion, de Dan Simmons: antes tarde do que nunca!

 AVISO: SPOILERS ABAIXO

Recém-publicado pela Aleph, este clássico de 1990 inédito em terras brasis - ainda, terras lusófonas - passou batido pelos nossos radares por tempo demais. Muitos aclamam como um dos grandes clássicos da literatura de ficção científica, merecendo seu lugar junto a sagas como Fundação ou Duna.

A tradução pode ser vista como sendo problemática, do título do livro - o titã Hipérion é velho conhecido da língua portuguesa - até a escolha do nome do grande antagonista da trama (até aí, Artemis - pitaqueado aqui - continuou sem acento na capa de sua edição BR pela Arqueiro: mais discreto, porém não menos estranho. Coisas do 'reforço de marca'?). Mas qualquer outro estranhamento que caso se possa ter é francamente diluível pela alta qualidade desta história.

Quem melhor conhece a obra me diz que é uma versão d'Os Cantos de Cantuária (Geoffrey Chaucer, sec. XIV), com a mesma estrutura de uma história sendo composta pelo contar dos personagens de suas próprias histórias pessoais. O que não é de se admirar, dado a formação acadêmica do autor ser de Letras. Uma outra obra dele, a duologia Illium e Olympus é a respeito de uma reencenação da Guerra de Tróia em Marte, por inteligências artificiais.

Como podemos ver, com Simmons nada é simples. 

Hyperion, portanto, é composto de uma história base que leva a bojo as histórias de seis dos sete protagonistas, em peregrinação para o planeta-título. Na medida em que a peregrinação ocorre, os personagens contam suas histórias pessoais e porque estão lá, para contar o tempo e talvez conseguir um insight de toda uma situação que os envolve, recheada de mistérios.

Na medida em que contam, percebem que, direta ou indiretamente, todos estão relacionados com  o remoto Hyperion e seu mais conhecido habitante, um monstro mitológico conhecido por empalar suas vítimas. Há todo um culto organizado por seres humanos ao redor do mito, que dadas horas lembra algo tirado de Hellraiser.

O futuro de Hyperion se passa no ano 2.732 (uma data modesta, perto de algumas antecipações mais hiperbólicas da ficção científica), e a Humanidade se espalha pelas estrelas sob sua Hegemonia, em centenas de mundos conectados por tecnologia de portais (chamada teleprojeção), também fazendo uso de naves subluz (com efeitos de dilatação do tempo contados como peso para a vida dos personagens).

Não é, apesar disso, um futuro gentil. Diferenças sociais abismais existem, potencializadas pela própria tecnologia, com ultra-ricos dispondo de casas em diversos mundos interligadas via portais, e massas de miseráveis vivendo de limpar canais de esgoto industrial como o descrito no planeta Portão Celestial, ou trabalhadores e operários vivendo em colmeias cinzentas em um ambiente esmagador como Lusus. Além disso, é citada a baixa alfabetização dessa mesma Humanidade pelas estrelas, e a singela falta da vontade de ler, como fica explícito na história contada pelo poeta: não bastasse, ainda uma parte da Humanidade, especializando-se em ambientes zero g, destacou-se e fugiu pelas estrelas, ameaçando voltar como uma força hostil contra a Hegemonia do Homem. Ainda, na última história, entendemos porque o espaço conhecido só apresenta relíquias alienígenas antigas ou o Homo sapiens: a 'hegemonia' assim é, pois descarta qualquer possibilidade de vida inteligente, antecipando uma concorrência.

A dupla duologia.

As histórias apresentadas se desenrolam bem, mesmo em sua complexidade, com focos em suas vidas pessoais alternando com as grandes questões e decisões que podem "abalar a galáxia", para ficar em um velho e preferido clichê, enquanto paisagens de diversos mundos são apresentadas, pelas memórias contadas ou durante a viagem dos peregrinos. Uma adaptação em minisérie seria realmente fascinante, pelos resultados.

No processo da escrita, vemos a qualidade do autor ao dar uma voz diferente (pessoal ou onisciente) para cada uma das histórias contadas, e aqui temos qualquer desenvolvimento de personagens: nesse primeiro volume, ao menos, ainda não li a sequência. Nenhum deles é particularmente simpático, salvo o professor, com o resto oscilando entre o mecânico e o insuportável.

As histórias pessoais são:

A história do sacerdote: "A fábula do homem e do deus"

Acompanhando a história prévia de um missionário, com seus pecados a pagar e sua crise de fé, a história contada por outro religioso que o conheceu, o padre Hoyt, bem descreve o afastar-se gradativo da civilização, mesmo uma com traços bem desagradáveis, cada vez mais dentro de lugares selvagens e inóspitos, exatamente como um evangelizador veria - apesar da conversão não ser a meta do missionário citado.

Por isso, essa história me fez lembrar de O Coração das Trevas (1899), em que se adentrava em um território cada vez mais longe, desconhecido e ameaçador a quem fosse de fora, como se fosse um personagem vivo. Ainda, as descrições das ruínas de tempos perdidos do Labirinto de Hyperion, assim como sua difícil acessibilidade, evoca facilmente as cidades perdidas de H. P. Lovecraft.

A relação com o povo Bikura de certa forma lembra o povo Pirahã, em seu isolacionismo e simplicidade (e com um missionário que saiu de seu contato com uma crise de fé), o que torna o contato pela linguagem outro tipo de desafio. Da mesma forma, os Bikuras são uma espécie de "neo-tribo": seres humanos que, no futuro, perdem o contato com a civilização tecnológica originária e forçosamente se readaptam a um estilo de vida tribal, ainda que à sua própria maneira (o "Povo Científico" de Estrelas, o meu destino sendo um exemplo). 

A história do soldado: "Os amantes da guerra"

A versatilidade de Simmons é vista logo no contraste aqui com a primeira história, melancólica e biográfica: agora vemos um thriller de sobrevivência sci-fi-militar taquicárdico, enquanto que a força hostil dos desterros é apresentada, assim como algum contexto. Poderia ser facilmente uma história no cinema estrelando, digamos, Tom Cruise ou qualquer outro 'action hero' que se queira elencar: o que significa que não há tempo para reflexão aqui, o oposto da história anterior. Há o mistério, entretanto, com que o soldado - cel. Fedmahn Kassad - se depara: a presença fantasmagórica de uma mulher nas simulações de batalha que, no final, levam ao monstro de Hyperion, e um pouco de seus planos.

Fan-arte inspirada. “The Lord and the Colonel”, por Alex Ries (fonte: Reddit

A história do poeta: "Cantos de Hyperion"

Aqui, temos outro depoimento pessoal, ainda que em uma história radicalmente diferente da do sacerdote, e talvez a que mais ofereça insights do cenário do romance. O poeta Martin Silenus, detestável até por seus companheiros de viagem, é uma extrapolação de ser escritor - especialmente quando quase ninguém lê -, eternamente em crise, seja porque não consegue público para sua 'alta literatura', enquanto que contratos milionários que lhe sustentam o luxo que tanto aprecia obrigam-no a escrever ficção rasa e escapista; seja porque luta para reencontrar sua musa: e quando a reencontra, tanto pior para todos.

O bônus aqui é um personagem secundário: há como não simpatizar pelo Triste Rei Billy e sua Cidade de Poetas.

A história do acadêmico: "O sabor do rio Lete é amargo"

O rio Lete, um dos rios do Inferno na mitologia grega, é o rio do qual as almas humanas, antes de renascerem, devem beber as águas, para que se esqueça da vida anterior. A citação do rio é o que ocorre com a filha de Sal Weintraub, como contado por este, É, disparado, a mais humana das histórias, 

Arqueóloga, a personagem vasculha as Tumbas Temporais de Hyperion, ruínas de sabe-se lá quando, para ser afetada de maneira única por suas 'marés temporais', revertendo sua idade rumo a seu nascimento, dia após dia. A agonia dos seus é desenrolada pela narrativa. E a peregrinação de seu pai, que tem nas mãos um bebê, é o que lhe resta como esperança - mesmo que em busca de um deus terrível.

A história da detetive: "O longo adeus"

Uma das mais famosas histórias de detetive dá o nome a este segmento, e aqui temos uma história seca, noir e cyberpunk para contar a participação das inteligências artificiais do cenário, especialmente seus esquemas velados: tudo começa com uma bela cliente - na verdade, um belo cliente - entrando pela porta do escritório chinelo de Brawne Lamia, investigadora particular, sem poder contar com a polícia, pedindo para que investigue um assassinato: o dele próprio.

A história do cônsul: "a história de Siri"

A ação da Hegemonia e uma pequena lição sobre como colonialismo funciona está nessa história, assim como as consequências da resistência armada. Ao mesmo tempo, ouvi ecos de Canções da Terra Distante, o último romance de Arthur C. Clarke (pitaqueado aqui), com longas despedidas entre amantes, separados pela dilatação do tempo por velocidades relativísticas. A dualidade - e oposição - dos mundos originais de ambos é uma resposta à proposta "E se Romeu e Julieta houvessem sobrevivido?".

***

Outra evidência da qualidade de Hyperion é que, apesar de recheado de referências literárias (o poeta inglês John Keats é paixão do autor), não conhecê-las não estraga a leitura: escritores, com suas pesquisas elaboradas, têm muito a aprender aqui.

Hyperion é seguido por Fall of Hyperion, Endymion e Rise of Endymion (trabalham como duas duologias), que estão ainda sem tradução publicada. Tomara que o primeiro venda o suficiente para a editora se interessar em lançar as sequências: é lastimável que, por exemplo, Anno Dracula - pela mesma editora - tenha ficado só no romance de estreia, por este exato motivo.

Recomendo altamente. Imperdível.

Hyperion
560 p
Aleph