quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Lebre da Madrugada e Príncipe Partido

Livro 1

AVISO: SPOILERS A SEGUIR

Lebre da Madrugada e Príncipe Partido formam a duologia Senhores de Sombra e Prata, romances de estreia de Arthur Malvavisco, autor sul-mato-grossense, publicados pela editora Corvus. Participei do financiamento coletivo, o que me deu acesso aos livros físicos. O formato digital também está disponível no site da editora (que, se entendi, deve lançar uma versão física regularmente).

A obra é de fantasia, com elementos medievais europeus no cenário, enfatizado pela sonoridade de nomes próprios e de lugares. Temos, no início de ambos os livros, um "Mapa da Região Norte de Solária", onde se passa a trama de interesse, embora não haja maiores conexões com o que existe ainda por aí, ou uma sensação de escala - como convém, ao meu ver, em tempos de dúbia cartografia. O mundo é rico, que ente o trabalho de pesquisa do autor e de pesquisador do autor, da área de biologia, trabalhando com répteis, resgate florestal e educação ambiental. Seu repertório é bem utilizado na construção e em causas-e-consequências do mundo e de ações, sempre bem descritas e em uma prosa fluída. Adiciona-se à trama elementos de identidade e sexualidade, que também fazem parte do universo pessoal do autor.

A trama se passa na Solária do mapa, onde seres humanos reconhecíveis como tal vivem, e que sofrem a cada dez anos com o Eclipse, um evento onde um outro mundo/plano chamado Ilúria colidem. O evento, a cada dez anos, é traumáticos, pois tanto o Umbral (a grande força mística que rege o entre-mundos) insiste em sangrar para outros planos com consequências nefastas; quanto os ilurianos (uma raça humanoide agressiva, de cultura belicista) aproveita para invadir Solária, cujas pessoas não são tão fortes assim. A saída em Solária foi montar uma igreja baseada em uma figura messiânica, e correr atrás de indivíduos capazes de canalizar as forças do Umbral e pô-los sob domínio orientação desta Igreja.

A partir disto, temos descrições que nos deixam à vontade nos diferentes ambientes de Solária, sobrando Ilúria em retrospecto nas lembranças de Aeselir. Especialmente em Lebre, em que muito de uma road trip acaba acontecendo, com o casal protagonista em fuga, após um início urbano e arredores. Apesar de Ilúria (e todos os seus dramas próprios) sempre ter um aspecto mais sombrio, mesmo isto é presente em Solária e suas paisagens, mesmo as mais agrestes: pontos extras pela abandonada Val Loire, vítima de um Eclipse em tempos anteriores.

Dois livros foram necessários para contar a história que Malvavisco queria contar, de 312 e 448 páginas respectivamente, sendo bem slow burn. Nelas, temos as histórias que se entrelaçam de Andras e Aeselir Hrád, que seguem a lógica enemies to lovers: mas reduzi-la a isso é subestimar toda essa construção. E prefiro não me alongar, porque julgo que essa resenha de Lebre da Madrugada, na Amazon em 17 de fevereiro último, já comentou de forma brilhante essa relação, e da mesma forma outros aspectos do primeiro livro.

Livro 2

Em Príncipe Partido temos o desenvolvimento das situações apresentadas em Lebre e às conclusões possíveis, da bagagem emocional dos personagens - especialmente Aeselir, que o segundo livro o torna protagonista de toda a história, em um sentido mais amplo - ao que fazer quanto ao apocalipse iminente.

A complexidade da trama e dos personagens em transformação aqui se mantém, e realmente leva o excedente de páginas para desenvolvê-las como bem merece. Entendendo que é o primeiro texto longo publicado do autor, o resultado me deu a impressão de um tour de force que talvez tenha sido um desafio para o escritor, especialmente se iniciante: tanto quanto d/escrever as informações necessárias (cenário ou do que for), há que se saber quando não. A duologia é rica em todos os traços a que se propõe, mas nem sempre me pareceu - notem, me pareceu - algo totalmente às claras; mas assim considero que possa, ou mesmo deva, ser a literatura: há um tanto para se deixar claro, e há outro tanto para se deixar a cargo dos próprios leitores. 

E, no caso dos Senhores de Sombra e Prata, ou de mundos que vivem à sombra um do outro, nada mais adequado.

Na loja da editora pode-se baixar gratuitamente o conto A Corrida dos Lobos, do autor, passando-se no mesmo universo.

Em suma: recomendo. Foi muito bom encerrar o ano com uma leitura assim, e esta como minha última resenha. É seguir o autor daqui por diante, e esperar o que ele ainda trará aos seus leitores.


Lebre da Madrugada
312 p
Príncipe Partido
448 p.
Corvus

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Argos 2023

 

Anno Draconnico, com vitória dupla de Ana Merege: é 2017 de novo!

Semana passada, quarta dia 13, tivemos a entrega do Argos 2023. Na figura acima, os ganhadores nas categorias Romance, Antologia/Coletânea e Conto. Cirilo S. Lemos levou o primeiro, e Ana Lúcia Merege os outros dois.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Entrevista com o Vampiro (2022)

Para assistir sem medo!

AVISO: SPOILERS ABAIXO

Adaptações sempre são uma aposta. Algumas dão certo, outras é melhor nem lembrar. Havendo começado com o óbvio, Entrevista com o Vampiro foi a melhor série em se tratando de natureza fantástica que assisti esse ano - e isso contando com Silo (resenha aqui), Extrapolations e For All Mankind.

Dá a impressão que tudo aquilo que deu errado com Anéis de Poder se acertou aqui: e houve mudanças arriscadas, as mais óbvias sendo tanto a mudança étnica de Louis quanto atualizar a série, tanto no passado - que agora começa em 1910 - e com a segunda entrevista, que é hoje em dia: a entrevista original de Daniel com Louis está no passado de ambos os personagens, ocorrida no final dos anos 70 e que acabou de maneira, huh, conflituosa: em uma cobertura da moderna Dubai, Daniel comparece a  um convite de Louis, para retomarem a conversa interrompida décadas antes, e assim esclarecem diversos pontos que a entrevista original omitiu, transferindo a ação para a Nova Orleans de 1910 a 1930.

A vantagem de se ter uma adaptação para a televisão, em vez de um filme, é que não temos que correr com o prazo apertado de cerca de duas horas somente do filme: esparramados em diversos episódios de 40 ou 50 minutos, há tempo para as minúcias acontecerem e, se cultivadas de modo certo, reforçam aspectos centrais da trama, personagens e o mundo: a relação do triângulo Lestat-Louis-Claudia é demonstrada e desenvolvida em toda sua doença. Da mesma maneira, as décadas se passando mostram a mudança de costumes, porém a permanência das questões raciais.

A perfeita família disfuncional.

O elenco está simplesmente incrível: o casa de protagonistas exibe, como tanto foi notado, uma química excelente. Nesse aspecto, é uma adaptação bem fiel: no fim das contas, temos a visão do que aconteceu de Louis, e Lestat é - inevitável porém inegavelmente - mantido como o monstro misterioso, criador e destruidor, incapaz de remorso e agindo sempre sob interesses próprios. O Lestat de Sam Reid entrega exatamente isso, o tom de ameaça sempre a cada instante que surge, o lado brincalhão que sempre sublinhou a crueldade acrescentam personalidade junto do amor que sente por Louis - na versão, claro, de Lestat do que seja o assunto. Mas mesmo o boneco insensível que dá a impressão ser Lestat consegue-se aqui gerar um mínimo de empatia, ao citar sua origem e seu relacionamento com o vampiro que lhe criou: e que, mesmo apesar daquele terror, a ideia de abandono o aterroriza, o que ele acaba levando adiante.

A faixa do amanhecer, a fresta do caixão que abre, a mordida vampiresca: abertura sensacional de várias leituras.

Jacob Anderson, (conhecido do fandom como o Grey Worm de Game of Thrones) no papel do 'vampiro humanizado', vítima de seu criador, tem muito mais tempo para desenvolver Louis, ainda levando em conta suas origens mortais como um homem preto da Nova Orleans de 1910. com uma família que consegue enriquecer e ter uma boa posição social - tudo considerado... - mas que com que desenvolve uma relação cada vez mais conflituosa (não bastasse desaprovarem sua linha de trabalho), especialmente após o envolvimento com Lestat: a perda dos vínculos de afeto e sociais, que nos ajudam com nossa própria humanidade, são muito bem desenrolados aqui.

Bailey Bass, com apenas nove créditos como atriz segundo o IMDB, dá toda uma nova dimensão para Claudia, essa é uma atriz para prestarmos atenção quando seu nome aparecer. A personagem aqui mudou, inclusive, de idade - de novo: a Claudia original dos romances era ainda mais jovem do que a Claudia de Kirsten Dunst -, e a percepção de ser uma recém-adolescente eternamente pode ter uma realidade material ainda maior do que a percepção de ser uma criança eternamente, levando uma dose de drama. E é ela que será a grande fonte de oposição a Lestat, primeiro com seus desvarios encantada com sua nova condição, depois em frio cálculo e planejamento: novamente, tudo isso com a vantagem de se ter diversos episódios, em vez de somente duas horas de filme.

Psycho-cutie-cutie dos papais.

Agora, é Eric Bogosian com seu Daniel  Molloy velho, doente, sobrevivente do encontro original, um jornalista que acumula décadas de cinismo e acidez, e que não sabe quando parar - e não é de hoje - que contestamos quem é o protagonista aqui. As perguntas de Daniel, assim como suas colocações, não raro deixando que o trauma e o ressentimento de quarenta anos antes as guie, ajuda a guiar as memórias e a história que Louis conta - mesmo para o desgosto do próprio, por vezes. 

No fim das contas, Entrevista com o Vampiro é uma linda passagem de tocha, entre gerações, das adaptações de uma mesma obra importante para o terror, e que a própria autora elogiava: me deu a impressão que, algumas coisas, talvez ela tivesse querido ter escrito pessoalmente, lá atrás...

Esta série faz parte do mesmo universo onde se passa As Bruxas Mayfair de Anne Rice, de outra série de livro da autora. A ideia é uma mesma cronologia... espero que dê certo. Ambas as séries estão ainda apenas com sua primeira temporada.

Que venha a segunda!

domingo, 26 de novembro de 2023

Resistência (The Creator)


Gareth Edwards e todos os nossos finais felizes mediante o apocalipse.

SPOILERS ABAIXO

Podemos pensar em uma escola de direção de hardware militar, da qual os decanos do curso certamente seriam James Cameron e Michael Bay. Mas, provavelmente beneficiado pela liberdade do roteiro de "apenas" 80 milhões de dólares, o mesmo Gareth Edwards que dirigiu Rogue One consegue em Resistência contar uma história talvez mais ao seu gosto, do que sofrendo interferências como no outro caso, e manter o 'military porn' em níveis satisfatórios - embora me pareça que não sejam poucas as correlações entre ambos os filmes.

Temas e estéticas do filme podem ser encontrados em uma genealogia que inclui "criancinhas mágicas" hi-tech que inclui I.A. (Spielberg) e Metrópolis (Otomo); o reconhecimento de direitos de robôs/inteligências artificiais como base para levante social e motivo pra guerra no pano de fundo do universo de The Matrix, assim como os replicantes de Blade Runner (uma das referências declaradas do autor).

No aspecto do aprimoramento da robótica, o filme também meio que é uma História Alternativa, com o avanço da pesquisa de inteligência artificial já deixando robôs participarem das tripulações do ônibus espacial nos 1980, conforme a "recapitulação histórica" do início. as inteligências artificiais são um fato comum na vida do planeta. Há robôs e simulantes, que são robôs de aspecto externo bastante humanos (a FC costuma chamá-los de andróides), inclusive com "aparências doadas" por seres humanos, em todos os setores da sociedade.

No meio do caminho, entretanto, uma bomba atômica atinge Los Angeles matando um milhão de pessoas, e a responsabilidade recai sobre as IAs (isso é esclarecido depois como um acidente, mas para nenhum efeito prático) que deveriam defender o país. Isso deixa os EUA, em nome do 'ocidente' (lá pelas tantas deixam de usar 'ocidente'), uma vez eleito um novo inimigo, um país vilanesco e agressivo.

Military porn: hardware e a estética futurista da opressão.

Enquanto isso, no oriente, nas nações da tal "Nova Ásia", as IAs eram rotineiramente mantidas em segurança e integradas à sociedade, sofrendo com os ataques contínuos americanos. A capacidade tecnológica deixa os robôs auto-conscientes e, no processo, capazes de tanto afeto quanto o ser humano. Há robôs que ocupam o cargo de sacerdotes e monges, como é demonstrado, havendo encontrado inclusive significado na espiritualidade: é isso ou "é tudo programação", como se insiste que seja pelos olhos dos ocidentais?

O filme, portanto, tem diversos componentes do leste asiático, entre cenário e elenco, enriquecendo a disposição futurista da trama, ao se passar em 2070 e não se limitando a um cenário totalmente americano, idealizado no progresso ou na derrota. Há um quê de "paraíso tropical conspurcado por ações militares" que também está em Rogue One, o que me faz perguntar se não é uma preferência também do diretor - embora, claro, não seja o único a abordar esse tipo de contraste.

Ken Watanabe e uma espécie de Caminho do Meio: o retrato da última guerra, antes da Singularidade?

A retratação dos "povos asiáticos" sem definição, mas assim mostrados, é a tolerância e complacência  (mesmo quando pegando em armas e lutando para sobreviver) com as quais, afinal, atraíram a ira americana ao receberem sem reservas os robôs em seu meio. Na insistência de um EUA vilanesco e agressivo, talvez se compense o que talvez seja uma forma elogiosa de orientalismo? Cartas para a redação.

A história em si passa pela terceira variação que assisti esse ano, após O Mandaloriano e The Last of  Us, do cara truculento que tem que proteger uma criança desconhecida durante um trajeto e vai amolecendo no processo por causa do elo que, a contragosto, desenvolve com a criança. Ao menos, dessa vez, não foi com Pedro Pascal. :) Igualmente, foi a terceira criancinha mágica do ano (ela é a escolhida/tem em sua biologia um segredo/é híbrida de partes improváveis e/ou opostas/etc).

Criancinhas mágicas: a forma das coisas que virão.

A trama é mais complexa do que isso, com um soldado ocidental infiltrado entre guerrilheiros orientais para encontrar um grande projetista de IAs para assassiná-lo mas que se afeiçoa àquela gente e uma mulher em especial, então "going native" (Avatar, Pocahontas). Após um ataque onde está e sua gente ser obliterada, é retirado da aposentadoria, convencendo-o a retomar a missão quando vendem a ideia de que sua favorita - morta quando estava grávida do filho deles - ainda estaria viva. Encontre-a, e encontraremos o tal arquiteto misterioso. 

O trecho final - onde para se resolver as coisas depende-se da decolagem de um voo clandestino - é meio corrido, o que é curioso, pois são mais do que duas horas de filme. Mas é o problema quando, ao lado da ação desenfreada, ainda se procura tempo para desenvolvimento de personagens e suas tramas mais pessoais, sentimentais - e inevitavelmente mais lentas. 

O elenco está muito bom, com John  David Washington (filho de Denzel, aliás), fazendo com Gemma Chan (desde 2015 às voltas com direitos de robôs) muito bem um casal trágico, e, em ótima estreia, a criancinha mágica de Madeleine Yuna Voyles.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Prêmio Argos 2023 - Segundo Turno

O Argos encerrou na virada pra esta terça e já divulgamos os resultados dos finalistas para o 2o. turno, em que qualquer um - membro ou não do CLFC - pode votar. Aqui segue o link para a cédula. Sim, este ano teremos dois turnos. O resultado do 1o. turno (votação fechada no CLFC) rendeu os finalistas abaixo, candidatos na nova cédula de votação.

Alguns são veteranos, havendo até ganhado em outros anos, enquanto que há alguns nomes que, na comissão ao menos, desconhecíamos até aqui.

Melhor Romance:

* Baluartes: Terra Sombria, de Clinton Davisson  

* Bem Mal me Quer, de Hache Pueyo

* Estação das Moscas, de Cirilo S. Lemos

* O Fantasma de Cora, de Fernanda Castro

* Paradoxo de Theséus, de Alexey Dodsworth


Melhor Antologia/Coletânea

* A Study in Ugliness e outras histórias, org. por Hache Pueyo

* Fator Morus, org. por Lu Evans

* Mafaverna: Democracia, org. por Jana Bianchi e Diogo Ramos

* Os Pilares de Melkart, org. por Ana Lúcia Merege

* Outros Brasis da Ficção a Vapor, org. por Davenir Viganon


Melhor Conto:

* Fica com Mi-go esta Noite, por Carlos Relva

* Jogo do destino, por Ana Lúcia Merege

* O Renascer dos Deuses, por Oghan N'Thanda

* Planeta Quilombo, por G.G. Diniz

* Sankofa, por Juliane Vicente


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

O Planeta do Exílio

Saudades de pockets assim...


Mês passado ainda conclui O Planeta do Exílio (1966), de Ursula K. LeGuin, nessa edição mesmo, da foto. 

Não tenho nada para falar que a Cristina Lasatis tenha dito em uma resenha de seu blog, que descobri no skoobs. Vale a leitura.

Acrescento que, ao que nos parece, a ideia da colônia da Humanidade que perde laços com sua origem, regredindo tecnologicamente era uma ideia vigente no período. Temos pelo menos o ciclo de Darkover, de Marion Zimmer Bradley, e Dragonriders of Pern, de Anne McCaffrey. 

Não deixa de ser uma forma de lamento do Éden perdido, presente no desencantar de um mundo como a Terra Média de Tolkien, onde as coisas eram definitivamente mais agitadas do que antes da Terceira Era.

Mas anoto aqui pelo registro.


O Planeta do Exílio

224 p.

Ediouro

domingo, 10 de setembro de 2023

Silêncios Infinitos

Anong Us - o Livro

AVISO: SPOILERS A SEGUIR.

O sistema tríplice de Alfa Centauri, distando de nós "apenas" 4,3 anos-luz, vem sendo uma constante na Ficção Científica, e a descoberta de um planeta ao redor de Alfa Centauri C (mais conhecida como Proxima Centauri), em 2016, apenas agitou ainda mais nossos sonhos de exploração espacial: rochoso e do tamanho da Terra, Proxima Centauri b (em minúsculo) está na distância certa para que, caso haja água em sua superfície, ser encontrada em estado líquido, o que por sua vez sugere a possibilidade de haver vida (nem que um pouco como a que conhecemos) ou, pelo menos, viabilizar alguma sobrevivência nossa: e é lá que a trama de Silêncios Infinitos se desenrola. Passando-se no século XXVI, temos a história da expedição que lá chegou, e sua tarefa é preparar o planeta para a futura colonização.

Próxima Centauri b é retratado como um mundo de luz eternamente vermelha e imutável, como convém a um planeta que sempre mantém uma mesma face voltada à uma anã vermelha, e de vegetação escura, negra - para a máxima captação da luz solar. A atmosfera ainda é irrespirável e os níveis de radiação são problemáticos. Na verdade, temos muito pouco do planeta (há um mapa-mundi no início do livro, junto com uma breve cronologia do futuro), com a ação se passando entre os módulos da estação em que vivem e trabalham as personagens. Há descrições de sua organização, assim como as IAs presentes, e como isso acaba sendo importante a todos e à trama.


Concepção artística da vista de Próxima Centauri b e seus três sóis, no céu.

Isso por si me lembra de séries e filmes como Espaço 1999, Projeto UFO e 2001 - Uma Odisseia no Espaço: ambientes altamente tecnológicos, a única possibilidade de sobrevivência entre um exterior vazio e letal e um interior seguro porém estéril. Sob um certo aspecto, toda a tecnologia presente e o isolamento fazem com que esse tipo de cenário, em si, seja uma espécie de idealização de um laboratório onde o humano não deixa também de ser um experimento: o que, para a trama, faz sentido.

Os personagens são 26 clones adultos de especialistas em suas áreas que ficaram na Terra. Os clones mantêm alguma memória pessoal e traços da personalidade, realçados ou enfraquecidos conforme edição prévia desses originais e tratamento com remédios. Eles são peças dum grande mecanismo que preza a máxima eficiência dado a ambição da missão, e é curioso ver como, mesmo assim, o fator humano dá um jeito de se imiscuir, pelos clones ou seus originais.

A trama é contada a partir do ponto de vista de Liu, um clone que, ao despertar quando a expedição chega, recebe a carga mnemônica de dois clones: a que se destinava, a partir de seu original, e a de uma colega, Dira, cujo clone não acorda, e o sono é um enigma durante o ano que se segue, antecedendo o relato do livro. A personalidade de Liu é dominante, mas a de Dira não é apenas no plano da memória: e suprimir essa presença é de um grande transtorno para Liu: e aqui nós temos a grande sacada, representada na capa do livro, que é a apresentação da transgeneridade em um ambiente futurista e sua percepção como um erro, e o armário que disso gera -- uma vez que não há protocolos, naquela ordem perfeita, para aquela situação. O que fazer? O sentimento de inadequação de Liu lhe é avassalador.

Mas não demora muito, e o drama pessoal narrado por Liu, como já não lhe bastasse, é confrontado por outro problema: o líder da expedição morre assassinado. E há pouco tempo para descobrir, uma vez que uma tempestade gigantesca se aproxima da base.

Ao final das contas, o livro apresenta uma atualização da indefinição de se ser quem é a partir de memórias implantadas -- conforme Philip K. Dick trabalha tão bem em sua obra, desde os anos 60 -- trazendo para uma questão atual, da identidade de transgeneridade - com um twist todo próprio, como bem cabe à ficção científica. Witter também apresenta questões de ética - a eutanásia planejada para Dira, uma vez que a preservação de seu corpo apenas consome recursos - e, novamente, recontextualiza no ambiente futurista que preparou. A ideia da descarte de um ser humano, ou seu clone, não termina com a questão da eutanásia: ao meu ver, todos os clones presentes são descartáveis, e confesso que esperava dada altura do livro isso seria revelado, em mais uma menção a PKD - agora, com o tempo de vida útil dos replicantes. São questões, ainda, que valem a tag para este post de transhumanismo.

E isso, agora, me leva a ler uma nova versão de um tema que gosto muito, que chamo de "pecados dos pais": como a geração subsequente à de outra, em seu tempo protagonista, sofre com os erros cometidos por esta - no caso, os clones sofrem pelos atos de seus orginais orgânicos. Há uma lembrança aqui, pelo conceito somente, do filme A Ilha, com Ewan McGregor e Scarlett Johansson, em que clones devem - falando em termos amplos - pagar pelos erros de seus originais. 

Não é à toa que os clones, no livro, recebem seus nomes baseados em um deus de alguma cultura ao redor do mundo que tenha a ver com sua função, especialmente Hebe, "especialista em medicina de prevenção, cuidado e bem-estar", recebendo o nome da "deusa grega da juventude"; Naga é devido a uma "entidade guardiã entre os tailandeses", sendo "especialista em engenharia de segurança, com habilidades de luta e sobrevivência", etc. A nave que os transportou é chamada Vímana, e foi pilotada até lá pela IA cujo acrônimo se lê AGNI, também uma divindade hindu, do fogo, e ligada aos mitos de criação. Há uma bela descrição, no início do capítulo 3 (p. 27) comparativa entre o desmantelamento da nave para novas funções e a liberação de sua carga como a nova vida que se fará no planeta com mitos cosmogônicos, de onde dos restos mortais de um ser primordial surge a vida e o próprio mundo. Nada mais mitológico - ou, ao menos, grego-mitológico - que os erros antigos também sejam transmitidos nas novas oportunidades.

Terra: Próxima b não está impressionado.

Por último, gostaria de notar que foi com certa surpresa, pouco tempo depois de ter lido Corrosão, de ter me deparado tão cedo com outro livro brasileiro de ficção científica hard, ainda que tomando mais liberdades quanto ao cenário do que seria Próxima Centauri b - se bem entendi. Mas, ao contrário dos dilemas cósmicos de Gondim, Witter foca no dilema interno da personagem central, apesar do nível detalhado de uma missão de contornos épicos executada em ambiente altamente tecnológico, porém igualmente sem lançar mão de soluções mágicas, como convêm à space opera ou outros subgêneros da ficção científica: percebam, não tenho nada contra isto, mas reitero que é bom ver autores nacionais com a segurança de conduzir suas tramas dentro desse tipo de regra do jogo.

E assim como o livro de Gondim, gostaria de ver mais - particularmente, ainda mais que Corrosão, Silêncios Infinitos (um romance curto) termina sugerindo fortemente que pode haver uma parte 2 em algum lugar do hd da autora.

O livro faz parte da coleção Dragão Mecânico, da editora Draco. O capricho gráfico que lhes são peculiares está lá.

Recomendo.

Silêncios Infinitos
130 p
Draco

sábado, 19 de agosto de 2023

Silo

Silo: a verdade virá à tona - e alguns outros tantos mistérios também...

AVISO: SPOILERS A SEGUIR

Silo (2023) se passa em um período pós-apocalíptico, onde dez mil seres humanos nascem, crescem e morrem dentro de um bunker subterrâneo de 144 pavimentos, com medo do que ocorre na superfície. Eles sobrevivem em uma sociedade estável, por pelo menos 140 anos após um cataclismo, embora não saibam muito mais além disso: uma facção revoltosa no passado arruinou seus registros computadorizados, e ninguém se lembra mais como tudo aconteceu antes - "e a tradição oral?" pode ser uma pergunta válida, mas sem tantos spoilers assim.

A construção do cenário é bem explorada, com uma sociedade focada em cada um fazer o seu trabalho, em um ambiente confinado. Podia ser a bordo de uma nave ou veículo de gerações, como em O Expresso do AmanhãAscension ou algumas outras, embora a referência pop mais direta hoje em dia seja a série de games Fallout, onde personagens despertam de um sono induzido após o mundo entrar em uma guerra nuclear nos anos 50. Outras referências ceeertamente incluem 1984, onde o Grande Irmão nunca deixa de velar pelo povo, embora este, aqui, não tenha a menor ideia do que está acontecendo. Ainda, a ideia de uma sociedade confinada com medo - especialmente o injustificado - do que ocorre lá fora é antiga, de saída lembrando Fuga no Século XXIII e, claro, THX 1138. Podemos também nos lembrar de Zion, o último bastião da Humanidade, na franquia The Matrix.

Logo se vê uma conspiração envolvendo assassinatos, que é o que move a protagonista, que quanto mais cava, mais se aprende sobre os detalhes da sociedade, tanto os às claras quanto os sombrios. É uma trama sobre o apagamento sistemático do passado, em prol da segurança presente - e de interesses não necessariamente justificados para todos. O controle da informação sobre o passado é pivotal na trama, o que leva a um diálogo com obras da FC como o já referido 1984, mas também, pelo pós-apocalíptico da coisa, com Um Cântico para Leibowitz e mesmo Fundação.

Bom trailer!

O Silo, como assim é chamado, tem seus diversos pavimentos conectados sobretudo por um grande eixo central, ao redor do qual há uma rampa helicoidal, e as passarelas de acesso. Tudo é cinza meio esverdeado, salientando o cimento que vivem. Na base, há os engenheiros e mecânicos que mantêm 24 horas por dia o maquinário necessário funcionando, em geral se considerando meio esquecidos pelos demais níveis. Não há veículos, no máximo porters, mensageiros que vivem indo pra cima e pra baixo levando desde mensagens a alguma pequena carga. A tecnologia é similar à nossa, mas com um quê mais atrasado, justificável em uma sociedade que dirige todos os esforços em se manter funcional. À vista e escondido de todos, um poder Judiciário controla tudo ajuda a manter a ordem na casa: relíquias do mundo pré-apocalipse são objeto de visitas desagradáveis da lei em sua casa - e por elas, percebemos que o que acabou com a civilização não parece estar tão longe de nossa época.

Em cada nível há uma cantina comunitária, onde um amplo monitor panorâmico transmite, 24 horas por dia, uma mesma imagem, advinda da única câmera montada no exterior, sobre a saída do lugar. A saída do Silo, aliás, é garantida a qualquer um que se manifeste com uma frase como "eu quero ir lá fora" - mas uma vez proferida, não há desistência possível. O sistema criminal americano é lembrado aqui, com toda uma cerimônia de preparar um traje de sobrevivência, como quem arma uma cadeira elétrica ou câmera de gás, assim como o cargo de xerife, e a tropa de choque da polícia. Outra característica que permeia por alguns diálogos é a mítica dos 'Pais Fundadores' dos EUA, no caso, do Silo, que 'sabiam do que faziam', mesmo quando deixavam todo mundo sem resposta para algumas tantas perguntas.

Visualidades e ecos inevitáveis: O Planeta Proibido, O Túmel do Tempo...

O que leva a uma questão: onde ficaria o tal Silo? Uma única ideia, nesta temporada, é oferecida pela observação anual de um personagem secundário, que detecta uma formação de estrelas, à noite - cuja natureza os habitantes do Silo também desconhecem -, em forma de um W meio torto, que ele percebeu que nunca desaparece e reaparece sob o horizonte ao longo do ano. O dábliu sendo, pra conhece, a constelação do céu setentrional de Cassiopéia. E se ela é perene, ou seja, nunca se põe, está a (pelo menos) 34o. de latitude norte. Fuçando na internet, é uma latitude que passa por Los Angeles, e além da Califórnia, pelos estados de Arizona, Novo México, Texas, Oklahoma, Arkansas, Mississipi, Alabama, Geórgia e ambas as Carolinas: escolha um.

Da data dos eventos, é incerto se a série seguirá os livros, que se passam em períodos diferentes. O primeiro livro é vago sobre o assunto, o mais recente dá o ano de 2.345.

A protagonista da história é levada por Rebecca Ferguson (a Lady Jessica no novo Duna), ainda constando Tim Robbins. O elenco manda muitíssimo bem em seus personagens, com seus próprios problemas e segredos, ajudando a tocar a trama em um ótimo andamento, até um final de temporada bem surpreendente: se isso lembra a vocês de decepções como Lost, compreensível. Mas me parece que aprendeu as lições do que não fazer. A princípio, já que encerra a temporada em... grande estilo, digamos.

Sir Friendzone, ainda suspirando pela aprovação duma lourinha...

A apresentação é particularmente estilosa, aproveitando a coluna central do Silo, ao redor da qual desce uma rampa e acessos por seus cem níveis, e tece comparações com uma colônia de cupins, a espiral do ADN, coluna vertebral, etc.

Silo é uma adaptação de um universo ficcional criado por Hugh C. Howey, que já rendeu escritos e uma graphic novel. Aliás, fandom wiki aqui.

Pela Apple TV+, eu espero que haja uma segunda temporada.

domingo, 16 de julho de 2023

Simbiontes

Capa da edição impressa.

SPOILERS ABAIXO

Simbiontes, de Gerson Lodi-Ribeiro, é um romance de ficção científica militar, em um raro caso brasileiro deste subgênero, passado em seu universo ficcional da Aeternum Sidus Bellum, em que uma situação de primeiro contato leva a Humanidade a desenvolver uma cultura eminentemente guerreira. Os escritos acompanham as guerras travadas através dos séculos contra os Ry’whax, primeiro em um império estelar, depois reformados em uma república - nada dura para sempre com as civilizações descritas por Gerson, a não ser a própria guerra em si.

É o segundo texto que leio deste universo, o primeiro sendo a noveleta No Amor e na Guerra (situada 400 anos antes deste romance), publicada na antologia Space Opera: Aventuras fabulosas por universos extraordinários e republicada na coletânea Os Humanos Estão Chegando.  

Como de hábito, o worldbuilding do autor é caprichado, como visto em outros trabalhos. Neste livro, há dois apêndices, um com a cronologia através de alguns séculos da ASB e outro com a biologia da raça Ry’whax.

A história versa a respeito de um projeto secreto vital para a Humanidade e seus aliados, que devido à guerra começam a enfrentar escassez de matéria prima sendo executado na estrela Rigel, e o sacrifício necessário para tirar a atenção do inimigo de lá quando eles descobrem suas atividades. A batalha espacial encarniçada que se segue, desafiando todas as probabilidades, termina nas cercanias de um planeta em outro sistema estelar que, a princípio parece desabitado - enganosas aparências que levam à segunda parte da trama.

Capa do e-book.

Os personagens, especialmente os humanos e seus aliados, têm um ponto de vista mais centralizado na história e, por isso, são melhores desenvolvidos que os oponentes, presos em um comportamento de terríveis conquistadores espaciais que, pessoalmente, não tenho nada contra em uma trama assim. O desenvolvimento dos personagens é interessante, embora em algumas cenas e diálogos eu tenha achado um pouco deslocados, especialmente em meio a um frenesi de batalhas espaciais. Mas isso não impede em nada a fruição do livro. 

O título é interessante, pois oferece algumas leituras: os simbiontes citados tanto podem ser os implantes no cérebro dos Humanos e aliados, que se comportam como entidades inteligentes à parte com personalidade própria; da relação belicosa entre Humanidade e Ry’whax e mesmo uma ocorrendo no mundo em que ambos os oponentes irão parar.

Para os entusiastas de cenários de guerra espacial e, ainda, promessas de grandiloquência cósmica, é recomendado. Quero ver como se desenrola nos demais escritos. :)

Termino aqui com uma pequena lista fornecida pelo autor dos escritos, dentro da cronologia interna de ASB: 

1) Decisão em Capella

2) Simbiontes

3) Germes Mortais

(*) Os Humanos Estão Chegando: coletânea com várias narrativas, desde anteriores a Decisão em Capella a posteriores a Simbiontes.

Simbiontes (2022)
259 pp. (edição física)
autopub.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Filmografia das ExoMigrações

Disclaimer: SPOILERS a seguir.

A ideia de naves espaciais levando tripulantes inertes, sob alguma forma de animação suspensa, através de décadas ou séculos até um outro sistema estelar - devido à impossibilidade do voo mais veloz do que a luz - data pelo menos de Far Centaurus (1944), conto de A. E. Van Vogt, em que o autor aproveita e dá também a solução de "e no meio do caminho, enquanto dormiam, o voo FTL é descoberto e quando chegam ta-daaa já tá tudo habitado". O destino era a estrela mais próxima depois do Sol, o sistema triplo de Alfa Centauri (Alfa Centauri A, B e C - esta última é tbm conhecida por Proxima Centauri).

Há uma certa solenidade no conceito, pois envolve um respeito e temor pelas forças da Natureza, e da vastidão de um cosmos letal e indiferente, ao mesmo tempo em que coragem face a um provável sacrifício de suas próprias vidas são valorizados: o conceito do "martírio pela Ciência" data da virada para o século XX e nunca desapareceu por completo.

Uma variação do tema é a nave geracional, em que se não se preserva os tripulantes pois tal tecnologia é impossível ou ineficiente, mas supõe-se que eles vivam, tenham filhos e faleçam em tempo de voo, até que futuramente se chegue ao destino (um planeta habitável, via de regra). Teóricos da Astronáutica como Robert Goddard, J. D. Bernal e Konstantin Tsiolkovsky já propunham isso lá pelos 1920s.

Não é à toa que se denomina esse tipo de nave, em geral, como "arca": para a nossa cultura ocidental, a referência óbvia é a bíblica, em que na Arca de Noé a esperança de sobrevivência dos últimos humanos (e das espécies animais) persistiam após a destruição do mundo anterior. Outros povos ao redor do mundo apresentam histórias semelhantes em seus imaginários, como Deucalião e Pirra dos antigos gregos. 

Tem uma bela lista do Goodreads onde várias obras literárias do subgênero são apresentadas, incluindo-se aí Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke (1973), Aurora (1980), de Kim Stanley Robinson e Herdeiros do Tempo (2015), de Adrian Tchaikovsky.

Abaixo, alguns exemplos nas telas.

Originalmente, a missão a bordo da Júpiter II de Perdidos no Espaço (1965-1968) incluia sua tripulação em animação suspensa, até o ato de sabotagem do Dr. Smith. Ambas as séries, a original e a de 2018, têm Alfa Centauri como seu destino, embora o filme (1998) se refira a um planeta chamado Alpha Prime - seja onde lá isso for. Tal recurso não foi adotado mais, entre as viagens nos episódios para o planeta da semana.

A nave Júpiter 2 original.

Semente do Espaço (1x22) é um dos mais famosos episódios da Star Trek original, pois apresenta o vilão Khan Noonian Singh, que vinte anos depois volta em Jornada nas Estrelas II - A Ira de Khan (1982), assim sedimentando a ideia de continuidade em um show que prima em ser episódico, dado o formato de época. Após terem sido derrotados nas Guerras Eugênicas dos anos 1990s, Khan e os seus são julgados e exilados em uma nave sem capacidade FTL, sendo mantidos em animação suspensa - até serem encontrados pela tripulação da USS Enterprise.

A Enterprise e a Botany Bay: não uma, mas duas naus de insensatos...

O Mundo Infinito (3x08, 1968) é outro episódio da série clássica, em que os habitantes de Yonada, um asteroide oco, já se esqueceram até mesmo que estão em um lar provisório, com sua jornada havendo  começado com seus antepassados milênios antes.

A Enterprise e o asteroide-mundo Yonada.

A Estrela Perdida (1973) no Brasil, Starlost foi uma série de curta duração, com base em história de Harlan Ellison e com a atuação de Keir Dulea, o Dave Bowman de 2001 - Uma Odisseia no Espaço. Nela, a nave Ark, de (fontes divergem, mas são muitos quilômetros) de comprimento, carrega diversos ambientes estanques em uma longa viagem interestelar (fontes divergem, mas por muitos) séculos, mas está em curso de colisão com uma estrela. Cabe os personagens trafegar entre os diferentes ambientes (onde, via de regra, seus ocupantes também se esqueceram de suas origens), um por episódio, até o comando para tentar consertar a coisa. Após uma temporada, entretanto, a série foi cancelada sem que houvesse uma solução ao dilema central.

Earthship Ark: vagando incerta até hoje.

Wall-E (2008) conta a história em uma Terra arruinada ecologicamente pelo consumismo exacerbado, deixada sob os cuidados de robôs lixeiros enquanto ela volta a se tornar habitável, e que o que restou da Humanidade nasce, vive e morre a bordo dos Starliners da corporação BNL: aqui, a história se passa a bordo da Axiom, em que todo o dia é uma mistura de country club com shopping center, e seus moradores mantidos em ignorância e consumismo, conforme o desejo do verdadeiro comandante da nave, que não deseja voltar à Terra. Uma sociedade mantida estável, na ignorância e pelo consumo de bens materiais não é novidade na FC: adicione drogas e teremos, pelo menos, Admirável Mundo Novo (1932).

 

Axiom: a distopia simpática.

Pandorum (2009) apresenta a tragédia da Elysium, que parte com 60.000 almas para colonizar um mundo em uma viagem de 123 anos, pondo todos em hibernação. Mas quando alguns dos colonos despertam, descobrem haver toda uma nova situação a bordo, com mutantes canibais descendentes de quem devia estar dormindo tocando o terror. O filme foi muito mal na bilheteria, o que interrompeu suas pretensões de ser uma trilogia.

Elysium: mais para Hades.

Ascension (2014) envolve o Projeto Órion, uma estimativa do governo americano para lançar uma nave que pudesse alcançar até 10% da velocidade da luz, utilizando como propulsão sucessivas detonações nucleares à popa do veículo, protegido por um escudo resistente. O projeto foi proposto ainda nos anos 60 e, na vida real, engavetado: esta minissérie propõe que ele não somente foi construído como lançado secretamente, com a trama se desenrolando tanto lá quanto cá, em clima de conspiração. A bordo, ainda é uma espécie de sociedade americana dos anos 60, com moda e visual congelados no tempo, já na terceira geração - além de problemas, conspirações e estranhezas ocorrendo a bordo. 

Ascension: nem tudo é o que parece ser...

Passageiros (2016) investe no drama pessoal de um solitário colono que, por defeito de sua unidade de criogenia, desperta antes da chegada, o que ocorrerá apenas em 90 anos. Sem a possibilidade de entrar novamente em animação suspensa, ele percorre os amplos salões e corredores da Avalon e resolve despertar outra passageira, por quem passa a nutrir sentimentos, possivelmente a condenando a um destino semelhante ao dele.

Esquemas da Avalon.

Smile (10x02, 2017) é um episódio de Doctor Who onde a ação transcorre em uma colônia extrassolar (é dito ser Gliese 581d, off-screen) com uma nave de hibernação já havendo aterrissado, a Erewhon.

Se as Estrelas aparecessem (1x04, 2017) é um episódio da série The Orville, inspirada em Star Trek. Apesar do clima de paródia que permeia a série, ela consegue por diversas vezes ser extremamente fiel ao material original. Neste episódio, de forma semelhante a O Mundo Infinito, descrito acima, uma arca transporta seus habitantes há tanto tempo que eles já se esqueceram de suas origens: no caso, uma viagem para colonizar outro planeta se torna uma jornada de 2.000 anos, após uma tempestade iônica danificar o controle de voo, levando ao esquecimento e regresso da tecnologia e civilização.

A gigantesca bionave: perdidinha ali no meio, creiam, está a Orville.

The Ark (2023) é uma série que conta sobre uma malograda expedição a Próxima Centauri b, cujos futuros colonos são despertados de sua criogenia porque sua nave está caindo aos pedaços, e ninguém sabe direito o motivo. O elenco, como já é moda há algum tempo, constitui-se de desconhecidos entre si com diversas origens, capacidades - e motivações - que não exatamente gostam uns dos outros, mas precisam trabalhar juntos para sobreviverem a um desastre

Ark 1, onde problemas não faltam.

Das amostras acima, interessante ver alguns flertes com hard science-fiction, antes de sucumbirem às necessidades do drama, alguns erros conceituais e franco não-tô-nem-aí.

Nos onze casos acima, cinco adotaram destinos cientificamente embasados (seis, se contarmos o da Axiom). O sistema tríplice de Alfa Centauri foi lembrado quatro vezes: Perdidos no Espaço original e de 2108, Ascension e Ark 1. É normal que Alfa Centauri tenha uma boa presença em nosso imaginário: é o sistema estelar mais próximo do nosso, distando a 4,3 anos-luz: uma lonjura desgraçada que, ao mesmo tempo, é um "logo ali" em distâncias astronômicas. Com a confirmação de planetas ao redor de Proxima Centauri (Alfa Centauri A e B, mais semelhantes ao nosso Sol, não estão apresentando evidência até agora), é normal que a ficção científica renove o interesse ultimamente - especialmente com Proxima Centauri b, orbitando na distância certa de sua estrela para ter água em estado líquido em sua superfície, se lá houver. Já Gliese 581d, no episódio de Doctor Who, orbita uma estrela a 20,4 anos-luz de nós, com sua posição aparente próxima à de Beta de Libra.

Passageiros cita um mundo-alvo apenas chamado Homestead II, em uma viagem que durará 120 anos, e o filme de Perdidos no Espaço menciona o tal Alpha Prime. O destino foi esquecido ou não era importante nos demais casos. 

As viagens retratadas levando aproximadamente 5 a 6 anos (Ark 1, na 1a. temporada), 50 anos (Ascension), 120 anos (Avalon), 123 anos (Elysium) 270 anos (Botany Bay), 405 anos (Earthship Ark), 750 anos (Axiom), 2.000 anos (bionave), 10.000 anos (Yonada) e três temporadas (Júpiter II).

Alguns dos motivos para os êxodos são semelhantes: a falência do ecossistema lança a flotilha com Earthship Ark, Júpiter II (1998), Axiom, Elysium e Ark 1; a superpopulação global lança o Júpiter II original, enquanto um evento de impacto na Terra motiva a partida dos expedicionários no Perdidos do Espaço de 2018; pelo ensejo por colonização em outro sistema estelar decola a bionave em The Orville; a explosão da estrela natal em nova lança o asteroide Yonadu, e uma sentença penal encarrega a Botany Bay de levar Khan e seus asseclas para sabe-se lá para onde.

Dos veículos retratados, além da barreira da velocidade da luz (mesmo se o universo ficcional permitir), algo que que se pretende que dê peso (piscadinha, piscadinha) ao cenário é a gravidade induzida por setores rotatórios, como em The Ark e Passageiros. Ascension parte (mais ou menos) do princípio de que a nave tem alguma aceleração para explicar sua gravidade a bordo. Semelhantemente, nas séries Babylon 5 e The Expanse temos uma aplicação mais cuidadosa disto, assim como as necessidades da inércia sempre que possível: o problema primeiro é que, via de regra, gente flutuando significa encarecer a produção. Em segundo, levar em conta a inércia significa ações calmas e leeentas - assim como em 2001 e alguns filmes inspirados por ele ao longo dos anos 70 -, o que pra fins de drama não interessa a (quase) ninguém. Acaba sendo um equilíbrio nem sempre fácil de se obter entre ambas as necessidades, ao se fazer esse tipo de história.

Proxima b: from 'eyeball planet' to full Alderaan...

No final, o que sobra é a solenidade mencionada, e que na curta experiência humana, podemos relacionar somente com o período das Grandes Navegações que, independente de seus motivos e consequências, inspira até hoje se imaginamos a ousadia e engenhosidade do enfrentamento do mar aberto, ambiente eminentemente hostil, por quem somente dispunha de navios à vela e nenhuma possibilidade de navegação eletrônica, muito menos de comunicação com terra. Quando a ficção científica se estabelece, ao pensar no futuro da exploração espacial, inevitavelmente vai atrás das referências históricas e, como tal, traça paralelos com os 1400s-1600s.

Como será que faremos isso, na real? Só estando lá para saber. Tecnologia, ciência e sociedade às vezes dão saltos ou tomam caminhos inesperados de qualquer projeção que façamos: e ficção científica inevitavelmente reflete o agora.

Mas eu gostaria de estar lá para ver.

terça-feira, 27 de junho de 2023

O Auto da Maga Josefa

 

O Auto da Maga Josefa (2018). Editora Gutenberg.

O Auto da Maga Josefa é um romance fix-up por Paola Siviero*, ganhador dos Prêmios LeBlanc e Odisseia (Fantasia), e ainda finalista do Argos. Por mais que as premiações de literatura fantástica sejam recentes esse placar ainda não foi igualado por outro romance (do mesmo ano, só a antologia Fractais Tropicais, organizada por Nelson de Oliveira, ganhou dois prêmios em sua categoria, o LeBlanc e o Argos). Se só por isso já significa alguma coisa, ao mesmo tempo é um breve jus ao mérito demonstrado.

É um romance de fantasia, tendo como base folclore nacional, seja um tradicional, seja o contemporâneo, havendo espaço para alienígenas e chupacabras. E, na ausência de divindades intermediárias entre os polos absolutos, Deus e o diabo são tratados com relativa intimidade, como também vemos no folclore e na literatura de cordel. Respeitando esta base, temos ilustrações ao estilo, que abrem cada capítulo.

As histórias se passam no interior do Nordeste no início dos 1960s, ainda que a ruralidade do ambiente possa sugerir períodos anteriores. O Açude de Orós (1961), presente em uma das histórias, é mostrado como novidade. Mas de resto, o que se espera de cidades pequenas em meio à habitual seca compõem a maioria dos cenários pelos capítulos. 

Kenshin/Samurai X se não uma referência, uma boa lembrança.

Esse Brasil mágico, rural, que se cria à margem do Brasil que se industrializa, especialmente pós-Vargas, me faz lembrar de duas referências: tanto Samurai X, o anime, em que durante a Era Meiji (a industrialização japonesa à ocidental) o Japão medieval e mitológico, representado pelas bruxas, demônios e criaturas sobrenaturais é posto contra os corners do ringue pela modernização do país - mas deixam claro que não irão sem luta -; quanto a da obra do cineasta brasileiro, pré-Cinema Novo, Nelson de Oliveira, pai de uma proposta de gênero que infelizmente nunca emplacou, o Nordestern, e que alia o mágico com o Brasil rural e às vezes urbano por volta dos anos 60-70.

Por trás dos capítulos-episódios, há duas motivações simples: Toninho é um caçador de monstros sobrenaturais, filho de caçadores, e levar o legado da família adiante lhe basta. Como entrega o título, Josefa é uma maga, o que significa que sua alma está prometida ao diabo, em troca de poder: será que ela consegue escapar desta situação?

Na medida em que as histórias se passam, os personagens crescem, assim como se atenua sua difícil relação a princípio - nada de enemies to lovers, entretanto, o que é bom (com o perdão de quem se amarra em soluções assim).

Um auto, literariamente falando, originalmente é uma peça teatral curta, um só ato dedicado a alguma lição de moral, sátira ou outra mensagem (explicação bacana aqui), caracterizando-se por uma linguagem fácil. O livro apresenta essa prosa ágil, onde a leitura desliza, gostosa, por episódios curtos em um resultado que eu não canso de recomendar. Gostaria de ver mais, bem mais.

E tome de andanças...!

Por último, me dei à pachorra de ver o percurso dos personagens no google maps :) Ou, pelo menos, cidades próximas de onde a ação é citada.

* Aliás, quase publicando esses pitacos, foi anunciada a capa do próximo romance da autora no twitter, confiram!

O Auto da Maga Josefa
221 p.
Gutenberg

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Operação Resgate feelings...

(originalmente pus isto no twitter...)

Pura nostalgia. O início dum episódio com a abertura aqui.

Sob o risco de nos tornarmos a nação de agora 200 milhões de engenheiros navais; a ideia do submarino feito no easy mode lembra muito uma série nozoitenta chamada Operação Resgate, em que um sucateiro monta uma nave espacial pra ir à Lua. Puro suco de sonho americano, e com o devido perdão à criança que eu era, é dos casos que ficção científica envelhece mal (isso, quando não envelhece rápido), embora no quesito 'a opinião do zé mané vale tanto quanto a do especialista', a atualidade de Avenue 5 seja matadora - conforme aliás em post do outro dia.

Ah, esses sucateiros americanos incorrigíveis... 

Dentro dos meus achismos e pitacos; me parece que há uma espécie de linha de código de pensamento e comportamento ao longo aí duns 3000 anos  que permeia o pensamento ocidental, que vem da Grécia Antiga e é salientado hj em dia no pós-calvinismo neoliberal do self-made fucker.

Zilionários sendo, claro, o epítome (gostaram?) desse pensamento: Deus gosta de você por você ter/fazer dinheiro (Calvinismo em resumo), todos querem ter pelo menos um pouco da boa vida que têm (protagonismo no imaginário) e eles têm a faca e o queijo na mão para deixar sua marca na posteridade (gregos antigos) - nem que seja a da tragédia (gregos antigos again), como no caso. 

Mas noção de que eles também sejam fruto de um contexto maior e ameaçadoramente anonimalizante, ninguém quer nem ouvir: há mais de um tipo de vencedor para contar a História, afinal. Ninguém liga para as massas. É das massas que queremos, nós, os pós-gregos, nos excluir e destacar. E quanto a números...

Não há rostos discerníveis em meio à massa, mesmo na tragédia.

... a tendência é que eles anestesiem.



sábado, 17 de junho de 2023

Para uma Cinematografia do Retardo das Massas, ou: o Apocalipse Cognitivo será Televisionado

 Comecei essa postagem em 2021, logo após ter assistido Não Olhe para Cima, e vi que já havia exemplares que justificavam uma comparação. Mas acabei me esquecendo de concluir, e meio que perdi o timing do lançamento do filme. A situação política - ainda bem - minimamente voltou a um QI positivo (espero), mas... fica pelo registro. 

Dependendo, posso vir a adicionar mais entradas aqui, a futuro.

***

Don't Look Up - Altas Aventuras de Impacto Profundo no Armageddon.

Não Olhe para Cima (Netflix, 2021), quase encerrando o ano, enquanto começo a digitar este texto, conseguiu chamar a atenção nos dias que passam, por suas provocações, elenco estelar, e - como vem andando o mundo - pela capacidade de polarizar entre quem o ama e quem o odeia - note-se ainda, surpreendentemente, que a orientação ideológica ou partidária não é garantia deste posicionamento, ainda que certas carapuças certamente estejam descendo até os tornozelos. E não é à toa.

Quando começou a ser planejado, a ideia era contrastar o negacionismo científico a respeito da mudança do clima - longa e gradativa - com a da vinda de um cometa em curso de colisão com a Terra dentro de seis meses, em um evento resultante similar ao da extinção dos dinossauros, obliterando o ecossistema. Porém, ao longo da produção, veio a pandemia, e a ideia serviu para ambos os casos: na verdade, serve para qualquer caso onde os fatos e suas averiguações científicas - já incluído a verificação por outros cientistas - são tratados com o mesmo peso e descaso da opinião tanto do zé mané da esquina quanto da conveniência política do demagogo eleito da vez e interesse financeiro de uma elite econômica predatória.

A administração Trump (destaque para Meryl Streep), com seus tipos vulgares, obcecados por imagem na mídia e, pior de tudo: completamente inadequados para qualquer cargo que ocupavam; além da submissão aos interesses que financiaram suas campanhas eleitorais, fora campanhas sujas envolvendo fake news e factoides sempre que uma nova inconveniência surgia. Nova prova de universalidade do filme, pois tudo isso poderia ser um retrato dos EUA hoje em dia, não fosse a terrível sensação de familiaridade muito, mas muito mais próxima de nós aqui, no Brasil.

Ao mesmo tempo, lembram quando filme-de-meteoro (MeteoroImpacto ProfundoArmageddon) implicava em governos e sociedade sossegarem o facho e trabalharem juntos em um esforço focado para se livrar da ameaça de aniquilação total? Pois é: esqueçam. Agora que aquelas peculiares teorias da conspiração viraram mainstream (imagino que, inclusive, graças à 'aceitação e normalização' da figura do nerd, que também virou um mercado cobiçado), tudo é relativizável, todas as opiniões passaram a ter o peso de estudos feitos e revistos por especialistas. 

E aquilo que desagrade é simplesmente desconsiderado - assim como cientistas despedidos por não concordarem com a 'linha do Partido', ou melhor, a 'linha da Companhia', contestando a forma que a já citada elite empresarial resolveu que queria lucrar. Em geral no papel da Cassandra do mito grego em filmes assim, o cientista agora não somente ninguém dá bola, mas também é ameaçado no emprego.

No filme, essa elite, incorporada na figura de um 'Elon Jobs' da vida, é tão predatória que dado momento decide sacrificar uma missão que poderia potencialmente salvar o mundo após descobrir que o astro se aproximando contém trilhões de dólares em metais comercialmente estratégicos, lançando uma segunda missão que fragmentaria o cometa mas não o destruiria: pondo ainda assim em risco a vida sobre a Terra. 

Tal decisão entra no mecanismo de polarização da sociedade, com pessoas dispostas a arriscar tudo porque 'o cometa gerará empregos'. 

Mas não é a primeira vez em que crítica ácida em comédia às custas do que é o próprio público médio - ei, claaaro que não a você, mas aos outros, aos outros... - é feita.

Space Force (Netflix, 2020) tem semelhanças com Não Olhe Para Cima, havendo se iniciado durante o governo Trump, contra o qual não faltam farpas, em termos de irracionalidade e jequice apresentadas. Para a segunda temporada (2022), havendo mudado a administração americana para algo minimamente racional, talvez exatamente por isso certo tom de crítica arrefeceu, e a série se tornou mais um programa sobre colegas disfuncionais de trabalho que acabam tendo uns nos outros uma espécie de família: meio que um The Office orientado ao espaço, não à toa com o mesmo Steve Carell,  Um ótimo preço a ser pago, tudo considerado...

Avenue 5 (Amazon, 2020) coloca a opinião do zé mané, especialmente a do zé mané com dinheiro, no real valor que ela tem, quando o assunto é ciência. O Avenue 5 do título é o nome de uma nave espacial de turismo, dando uma volta interplanetária em nosso sistema solar, e que acaba ficando sem controle. O reduzido staff técnico do cruzeiro tem que lidar com o "bom senso" prevalecente de bordo, dos passageiros e do patrão, que difere da maioria apenas por ter mais dinheiro - de saída, o atraso entre as comunicações nave-Terra devido à enorme distância lhe é um incômodo, não resolvido apenas porque ninguém está sendo criativo ou propositivo o suficiente. O episódio 8 é particularmente enervante, em que por votação querem abandonar a nave, apostando que nunca saíram da Terra.

Idiocracy (2006) talvez seja o marco moderno dessa cinematografia, tendo um olho na sociedade contemporânea de consumo, da época da Internet. Do mesmo Mike Judge que nos deu O Rei do Pedaço e, claro, Beavis e Butthead (1993-2011), com seu olho para a mediocridade humana fez de Idiocracy um filme tido como de, desnecessariamente exagerado em sua época a, simplesmente, profético. Meu medo é que, nesse ritmo, algum dia passe a ser desatualizado e mesmo otimista. Mas, que a cafonice de mau gosto da presidência Camacho e sua associação com a mídia e cultura pop lembram os tempos obsessivos com o assunto de Trump e, por tabela, a da presidenta Orlean: sem dúvida. 


Com a palavra, o excelentíssimo senhor presidente Dwayne Elizondo Mountain Dew Herbert Camacho. 

Os Simpsons (1989- ) Essa lista, claro, não poderia ficar sem eles. Não obstante os personagens principais e recorrentes já terem um viés simplório da dita típica família americana, o common sense das multidões é alvo dos roteiristas com alguma rotina.

"Nós continuaremos tentando fortalecer a família americana. Para fazer com que elas se pareçam mais com Os Waltons e menos com Os Simpsons." - sim, este senhor mandou essa na convenção nacional do Partido Republicano, 1992.

A Vida de Brian (1979), do grupo britânico Monty Python, mira na cegueira religiosa defendida como fé, ou em nome dela. O Brian do título nasce na mesma noite e na manjedoura ao lado da de Jesus Cristo, e com ele por vezes é confundido ao longo da vida. Seus idealizadores pretenderam que fosse um filme a respeito da estupidez pela cegueira religiosa.

Network - Rede de Intrigas (1976) conta sobre manipulação de índices de audiência através de um apresentador de jornal que apenas diz, ao vivo, que vai se matar, depois que sabe será demitido em breve. A ideia é como manter o interesse do público no auge, enquanto se dá voz a alguém precisando de tratamento. O protagonista passa a dizer o que o "cidadão médio sente" e com o que se indigna, antecipando (?) o demagogo moderno, e sendo contemporâneo de um tipo de midiático como Howard Stern, que inicia sua carreira como locutor em 1976 ainda em uma rádio universitária e que acrescenta baixaria sem culpa ao repertório.

Doutor Fantástico (1964), clássico de Stanley Kubrick, talvez fuja um pouco da ideia dessa postagem, uma vez que é focado no idiota no poder - o idiota com o gatilho da bomba atômica, capaz de começar o fim do mundo. Mas fica como referência e, temo, um conto cautelar imorredouro...