quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Teocrasília

Teocrasília, 2018


Obra nacional, de autoria - texto e desenhos - de Denis Mello; em tempos deste nosso cristofascismo distrópico é obra mais do que necessária.

Uma obra de Ficção-Científica dentro do subgênero das Distopias, Teocrasília nos fala um Brasil de um futuro próximo, evangélico e intolerante com tudo o que derive dessa forma de pensamento. Sem dourar qualquer pílula, é o Brasil de uma ditadura religiosa, uma teonomia ao melhor estilo O Conto da Aia, e que nesse nosso momento não soa algo tão improvável de ocorrer.

Os personagens são pessoais normais que a normalidade oficial os proíbe de sê-los como são, e como são levados a adotar posições de resistência e rebeldia contra essa oficialidade truculenta e abusiva. História que mostram que, para ter que sobreviver em uma sociedade pretensamente civilizada, não precisa ter que ser tachado como criminoso perante a lei: o passivo cada vez mais agressivo do geral é razão o suficiente para se viver em medo.

E é o que talvez seja mais assustador na história, que explora bem o clima de paranoia em sociedades assim, esse misto de omissão e coadunação das massas, da dita "gente de bem", com o terror que se instala, mediante então não somente seu voto, mas como seu aval.

A história salta aqui e ali no tempo, mostrando como se desceu rapidamente ao ponto em que está, não poupando críticas a figuras políticas e religiosas infelizmente conhecidas nossas, apenas mudando o nome.

Familiar? Pois é...

A arte, em preto e branco, cabe corretamente com o clima gerado, o de um futuro cinzento como um dia nublado, sem perspectiva de melhoras à vista, desenrolando-se em Niterói (cidade do autor) e seus arredores. Há medo, paranoia, e a coragem maior de se crer em esperança: mas não virá fácil. Afinal, este é o primeiro de 6 livros em quadrinhos. As tramas e dores ainda vão se alongar por muito tempo: o primeiro já é repleto de medo, tensão e violência, bem amparados pela arte de Denis.

O projeto foi financiado pelo Catarse (por onde Denis tem uma obra anterior de sucesso, o quadrinho de terror Beladona), e no link dá para conhecer um pouco mais desse ambiente e como pensa o autor.

Foram publicados, também pelo financiamento, Teocrasília - Edição Histórica e Teocrasília - Extra #1. O primeiro é como se fosse uma publicação alternativa contra o regime, e aproveita e mostra o desenrolar dos acontecimentos desde as Jornadas de Junho de 2013 que levaram à situação atual, notando um desenvolvimento cronológico desse universo pelo autor, para no final apresentar um refúgio comunitário livre e clandestino do regime teonômico onde parte da ação se desenrola.

O segundo, uma edição de formato menor, foi produzido durante um desafio de se fazer uma HQ em 24h, e conta uma história entre os capítulos 3 e 4 do álbum principal. A arte reflete um certo aspecto visceral de uma história de vingança, se puder assim descrever sem dar spoilers. :)

Teocrasília marca muito nosso tempo, o que talvez, a futuro, a deixe datada, mas não necessariamente: a exemplo de um grande clássico da distopia, 1984 de Orwell começa como uma crítica ao stalinismo, mas passou para o repertório mundial ao se tornar um alerta contra um regime opressor que vigie completamente a vida de seus cidadãos, tenha origem pela esquerda ou pela direita, sendo relido como um alerta ao totalitarismo. Acho que Teocrasília seguirá por aí.

Ainda cabe notar o êxito de O Doutrinador, HQ de Luciano Cunha, que recentemente ganhou as telas. Tanto esta quanto Teocrasília têm em comum a influência de eventos políticos que começam com a insatisfação da população contra a corrupção, desaguando nas já mencionadas Jornadas de Junho. Mas enquanto o Doutrinador segue a linha de anti-heróis ao estilo do Justiceiro, caçando corruptos um a um, Teocrasília é sobre não somente a corrupção política, mas todo um ambiente político repressor.

Lembro de ter visto, mas fui incapaz de guardar link ou nomes, de um projeto brasileiro de graphic novel sobre um transsexual também vivendo em um Brasil de ditadura religiosa há coisa de dois ou três anos atrás, mas não fui capaz de reencontrar a peça. Ou seja... o temor não é somente nosso: não é à toa que O Conto da Aia, fazendo sucesso agora em sua versão no Netflix, é um livro de 1985.

No Catarse, Teocrasília: Extra 2 está ainda em financiamento, havendo nascido do mesmo desafio do primeiro, só que este ano.

Inauguro, feliz, o marcador de quadrinhos com Teocrasília.

UPDATE Agosto de 2020: Teocrasília está com nova casa, a editora Guará.

Teocrasília
144 p.
Editora Caligari

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