sábado, 17 de junho de 2023

Para uma Cinematografia do Retardo das Massas, ou: o Apocalipse Cognitivo será Televisionado

 Comecei essa postagem em 2021, logo após ter assistido Não Olhe para Cima, e vi que já havia exemplares que justificavam uma comparação. Mas acabei me esquecendo de concluir, e meio que perdi o timing do lançamento do filme. A situação política - ainda bem - minimamente voltou a um QI positivo (espero), mas... fica pelo registro. 

Dependendo, posso vir a adicionar mais entradas aqui, a futuro.

***

Don't Look Up - Altas Aventuras de Impacto Profundo no Armageddon.

Não Olhe para Cima (Netflix, 2021), quase encerrando o ano, enquanto começo a digitar este texto, conseguiu chamar a atenção nos dias que passam, por suas provocações, elenco estelar, e - como vem andando o mundo - pela capacidade de polarizar entre quem o ama e quem o odeia - note-se ainda, surpreendentemente, que a orientação ideológica ou partidária não é garantia deste posicionamento, ainda que certas carapuças certamente estejam descendo até os tornozelos. E não é à toa.

Quando começou a ser planejado, a ideia era contrastar o negacionismo científico a respeito da mudança do clima - longa e gradativa - com a da vinda de um cometa em curso de colisão com a Terra dentro de seis meses, em um evento resultante similar ao da extinção dos dinossauros, obliterando o ecossistema. Porém, ao longo da produção, veio a pandemia, e a ideia serviu para ambos os casos: na verdade, serve para qualquer caso onde os fatos e suas averiguações científicas - já incluído a verificação por outros cientistas - são tratados com o mesmo peso e descaso da opinião tanto do zé mané da esquina quanto da conveniência política do demagogo eleito da vez e interesse financeiro de uma elite econômica predatória.

A administração Trump (destaque para Meryl Streep), com seus tipos vulgares, obcecados por imagem na mídia e, pior de tudo: completamente inadequados para qualquer cargo que ocupavam; além da submissão aos interesses que financiaram suas campanhas eleitorais, fora campanhas sujas envolvendo fake news e factoides sempre que uma nova inconveniência surgia. Nova prova de universalidade do filme, pois tudo isso poderia ser um retrato dos EUA hoje em dia, não fosse a terrível sensação de familiaridade muito, mas muito mais próxima de nós aqui, no Brasil.

Ao mesmo tempo, lembram quando filme-de-meteoro (MeteoroImpacto ProfundoArmageddon) implicava em governos e sociedade sossegarem o facho e trabalharem juntos em um esforço focado para se livrar da ameaça de aniquilação total? Pois é: esqueçam. Agora que aquelas peculiares teorias da conspiração viraram mainstream (imagino que, inclusive, graças à 'aceitação e normalização' da figura do nerd, que também virou um mercado cobiçado), tudo é relativizável, todas as opiniões passaram a ter o peso de estudos feitos e revistos por especialistas. 

E aquilo que desagrade é simplesmente desconsiderado - assim como cientistas despedidos por não concordarem com a 'linha do Partido', ou melhor, a 'linha da Companhia', contestando a forma que a já citada elite empresarial resolveu que queria lucrar. Em geral no papel da Cassandra do mito grego em filmes assim, o cientista agora não somente ninguém dá bola, mas também é ameaçado no emprego.

No filme, essa elite, incorporada na figura de um 'Elon Jobs' da vida, é tão predatória que dado momento decide sacrificar uma missão que poderia potencialmente salvar o mundo após descobrir que o astro se aproximando contém trilhões de dólares em metais comercialmente estratégicos, lançando uma segunda missão que fragmentaria o cometa mas não o destruiria: pondo ainda assim em risco a vida sobre a Terra. 

Tal decisão entra no mecanismo de polarização da sociedade, com pessoas dispostas a arriscar tudo porque 'o cometa gerará empregos'. 

Mas não é a primeira vez em que crítica ácida em comédia às custas do que é o próprio público médio - ei, claaaro que não a você, mas aos outros, aos outros... - é feita.

Space Force (Netflix, 2020) tem semelhanças com Não Olhe Para Cima, havendo se iniciado durante o governo Trump, contra o qual não faltam farpas, em termos de irracionalidade e jequice apresentadas. Para a segunda temporada (2022), havendo mudado a administração americana para algo minimamente racional, talvez exatamente por isso certo tom de crítica arrefeceu, e a série se tornou mais um programa sobre colegas disfuncionais de trabalho que acabam tendo uns nos outros uma espécie de família: meio que um The Office orientado ao espaço, não à toa com o mesmo Steve Carell,  Um ótimo preço a ser pago, tudo considerado...

Avenue 5 (Amazon, 2020) coloca a opinião do zé mané, especialmente a do zé mané com dinheiro, no real valor que ela tem, quando o assunto é ciência. O Avenue 5 do título é o nome de uma nave espacial de turismo, dando uma volta interplanetária em nosso sistema solar, e que acaba ficando sem controle. O reduzido staff técnico do cruzeiro tem que lidar com o "bom senso" prevalecente de bordo, dos passageiros e do patrão, que difere da maioria apenas por ter mais dinheiro - de saída, o atraso entre as comunicações nave-Terra devido à enorme distância lhe é um incômodo, não resolvido apenas porque ninguém está sendo criativo ou propositivo o suficiente. O episódio 8 é particularmente enervante, em que por votação querem abandonar a nave, apostando que nunca saíram da Terra.

Idiocracy (2006) talvez seja o marco moderno dessa cinematografia, tendo um olho na sociedade contemporânea de consumo, da época da Internet. Do mesmo Mike Judge que nos deu O Rei do Pedaço e, claro, Beavis e Butthead (1993-2011), com seu olho para a mediocridade humana fez de Idiocracy um filme tido como de, desnecessariamente exagerado em sua época a, simplesmente, profético. Meu medo é que, nesse ritmo, algum dia passe a ser desatualizado e mesmo otimista. Mas, que a cafonice de mau gosto da presidência Camacho e sua associação com a mídia e cultura pop lembram os tempos obsessivos com o assunto de Trump e, por tabela, a da presidenta Orlean: sem dúvida. 


Com a palavra, o excelentíssimo senhor presidente Dwayne Elizondo Mountain Dew Herbert Camacho. 

Os Simpsons (1989- ) Essa lista, claro, não poderia ficar sem eles. Não obstante os personagens principais e recorrentes já terem um viés simplório da dita típica família americana, o common sense das multidões é alvo dos roteiristas com alguma rotina.

"Nós continuaremos tentando fortalecer a família americana. Para fazer com que elas se pareçam mais com Os Waltons e menos com Os Simpsons." - sim, este senhor mandou essa na convenção nacional do Partido Republicano, 1992.

A Vida de Brian (1979), do grupo britânico Monty Python, mira na cegueira religiosa defendida como fé, ou em nome dela. O Brian do título nasce na mesma noite e na manjedoura ao lado da de Jesus Cristo, e com ele por vezes é confundido ao longo da vida. Seus idealizadores pretenderam que fosse um filme a respeito da estupidez pela cegueira religiosa.

Network - Rede de Intrigas (1976) conta sobre manipulação de índices de audiência através de um apresentador de jornal que apenas diz, ao vivo, que vai se matar, depois que sabe será demitido em breve. A ideia é como manter o interesse do público no auge, enquanto se dá voz a alguém precisando de tratamento. O protagonista passa a dizer o que o "cidadão médio sente" e com o que se indigna, antecipando (?) o demagogo moderno, e sendo contemporâneo de um tipo de midiático como Howard Stern, que inicia sua carreira como locutor em 1976 ainda em uma rádio universitária e que acrescenta baixaria sem culpa ao repertório.

Doutor Fantástico (1964), clássico de Stanley Kubrick, talvez fuja um pouco da ideia dessa postagem, uma vez que é focado no idiota no poder - o idiota com o gatilho da bomba atômica, capaz de começar o fim do mundo. Mas fica como referência e, temo, um conto cautelar imorredouro...

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