sexta-feira, 13 de junho de 2025

Herdeiros do Tempo

Uma boa primeira impressão.

Aviso: SPOILERS adiante. TW: aracnofobia (e pensar que os direitos foram adquiridos em 2017 para uma possível adaptação cinematográfica...).

Do autor inglês Adrian Tchaikovsky, Os Herdeiros do Tempo é uma obra de algumas camadas. Mais simplesmente, podemos dizer que é a respeito de exocolonização, em um processo absolutamente caótico para todos os envolvidos, uma lembrança que dificilmente planos a longo prazo duram tanto quanto nossas melhores intenções.

Em um futuro mais ou menos distante - datas nunca são exatas na história, o que aumenta uma sensação geral de insegurança, mesmo entre os personagens, que poderiam ter acesso a isso, o ano não é revelado ao leitor -, a Humanidade alcança as estrelas e alguns de seus exoplanetas, começando trabalhos de terraformação e implementação de espécimes terráqueas, preparando o lugar para a futura chegada de seres Humanos: mesmo a evolução dessas espécies animais agora estava influenciada por um nanovírus artificial que acelerava diversos processos cognitivos, possibilitando que, em suma, espécimes "nascessem sabendo" a partir de seus antepassados diretos, assim gerando futuros bons ajudantes para a Humanidade. Mas radicais anti-colonização entram em ação, e, ao menos um desses mundos, as coisas se desconfiguram do programado, com consequências fatais para a maioria dos envolvidos.

Passados alguns séculos onde a Terra sofre com a ganância humana e o ecossistema colapsa - passando ainda por uma nova glaciação -, os sobreviventes do "Antigo Império", o auge da civilização humana, reviram a tecnologia deixada séculos atrás para construir uma nave-arca, onde porão milhares de pessoas em sono criogênico e, atrávés de séculos indeterminados, tentarão alcançar um desses mundos prometidos - e o problema começa quando lá eles chegam.

Portia, em fan art por: Neil Richards/Zephusees. Fonte: Twitter

A história se divide em duas situações, o planeta onde as aranhas estão e a Gilgamesh. Para os viajantes, a Gilgamesh é todo o seu mundo, em uma viagem de séculos, onde não é por falta de agitação, apesar de ser uma nave-dormitório: capitães com complexo de Deus, sucessivos despertares por parte da tripulação a cada tantos séculos para um novo problema, motim a bordo, sociedades tribais, e a iminência da entropia final que já tarda em desintegrar a nave.

Já a segunda ambientação construída por Tchaikovsky não se limita ao planeta em questão, na verdade, descritivamente temos bem pouco dele, a não ser que fora refeito para ser um gêmeo da Terra, com espécies vegetais e animais transplantadas e inseridas com sucesso: é na sociedade das aranhas que essa ambientação brilha. Capítulo após capítulo, acompanhamos a sofisticação progressiva quando elas emergem de uma sociedade - o que já é, em si, um progresso... - de caçadoras e, por meios bioquímicos, montam uma civilização com suas próprias respostas à necessidade de industrialização, enquanto as histórias da geração retratada ocorrem; sempre motivadas pela ação do nanovírus e, mais tarde, para obter a graça e as respostas de seu deus criador em órbita. A exploração do mundo natural, a conquista e manipulação de outras espécies, questões religiosas, papéis de gênero: tudo existe e tudo muda, por mais resistente que se seja a essas mudanças. Vanguarda e tradição ainda se digladiam, mesmo entre uma sociedade de aranhas.

Em comum, a passagem do tempo para momentos críticos em ambas as histórias, a do planeta pela geração da vez, a da nave pelos olhos do historiador Mason, notando mais História do que seria prudente se fazendo ao seu redor.

Araaaanhas no espaço! - Primórdios...

Os humanos são contados principalmente pelo ponto de vista do acadêmico de bordo, Holsten, uma figura mais passiva do que realmente se espera, em geral, de um protagonista: a engenheira-chefe Lain é a personagem mais indicada para isso. O capitão Guyen toma para si o destino solene de conduzir a Humanidade para um novo mundo, não importa o rastro de cadáveres deixados no caminho: ele se revela como uma das oposições ao longo da trama, e até podemos entender como isso começou... temos a oposição maior aos humanos, na figura da implementadora do projeto de adaptação das espécies, a Doutora Avrana Kern, de genialidade comparável a sua irrascibilidade: grande candidata a vilã de FC dos últimos tempos, seja em qualquer de suas versões, da humana à digital e, hum... orgânica, novamente. 

Um problema, me parece, é que os humanos não são, no geral, tão interessantes assim, apesar do drama ter seu apelo: mas minhas cenas favoritas são no Mundo de Kern e as gerações de aranhas, um recorte de momentos críticos em épocas diferentes, repetindo nomes para funcionarem como uma espécie de arquétipo, acompanhando sempre o leitor.

Lados e lealdades obedecem a uma dança própria, a cada recorte de época, seja a bordo da Gilgamesh, seja com os personagens-arquétipos na sociedade aracnídea. Os dois núcleos são, portanto, separados o tempo todo, apenas se unindo ao final, após um puta dum conflito de clímax.  Mas não temos as impressões dos personagens humanos a respeito das aranhas e sua civilização, e tampouco temos a geração presente de Bianca, Viola e Portia deixando opiniões sobre os recém-chegados: eu achei que era como se "fosse hora de acabar", afinal, estamos já em nossas 500 páginas. Ao mesmo tempo, mais importava a jornada do que o "felizes para sempre" - falando no que, o final me surpreendeu, apesar de crer poderia ter um pouquinho mais de desenvolvimento. Mas isso não compromete o desempenho da história.

O livro tem um feeling de Arthur C. Clarke qualquer, não só em certas expectativas cósmicas, mas também em parte do enredo: as aranhas tentando entender seu deus lembram os antropoides diante do Monolito em 2001, e a descoberta do segundo Monolito na Lua me lembra quando as aranhas finalmente alcançam a coisa mais próxima da órbita planetária e se comunicam com seu deus: isso me lembra, particularmente, o conto A Sentinela, do próprio Clarke, que mais tarde o inspirou a fazer o romance.

Aranhas e mais aranhas...

Uma coisa que gostei de notar e que ressalto é a questão da memória, nesse livro. Como acontece com temas que beiram o cyberpunk e o transhumanismo, evidencia-se a fragilidade da memória e, por tabela, a da personalidade. A dualidade Kern/Eliza e os homúnculos digitais de Guyen, em uma pálida tentativa de replicar o processo de imortalidade digital completamente subcompreendido, geram transtorno em personalidades já instáveis e cobram seu preço depois. As aranhas, beneficiadas pelo nanovírus, têm seus processos cognitivos acelerados, capazes de transformar conhecimentos adquiridos por prática ou aprendizado em bens preciosos, uma espécie de patrimônio que as ajuda - se entendi - mesmo a obter certo status em sua sociedade. Na Gilgamesh, pela deterioração contínua dos sistemas, havia o risco de se perder a História da própria Humanidade, a saber das próprias pessoas que não eram mais acordadas, mas que nasciam a bordo, em condições mínimas para algum aprendizado técnico, chegando a tanto. 

Se não pelo fardo - por vezes, insustentável -, então pela simples vontade de perseverar e continuar. Com alguma sorte, recomeçar.

A ambientação deste livro ainda se desenvolve em Children of Ruin (2019) e Children of Memory (2023) que, juntas, valeram ao autor o Hugo de Melhor Série em 2023: Morro Branco, POR FAVOR, lance suas continuações!

Herdeiros do Tempo
520 p.
Morro Branco

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Megalopolis


Esse lightsaber tá diferente...

Alerta: SPOILERS A SEGUIR.

Megalópolis (2024) é a ousadia de um veterano do cinema. Francis Ford Coppola, ao longo de décadas de carreira, dirigiu/produziu clássicos do cinema americano como Drácula de Bram Stoker, Apocalypse Now e, claro, a trilogia de O Poderoso Chefão, e agora nos brinda com uma obra de ficção científica.

É um filme autoral, com uma história de 40 anos entre a concepção, desenvolvimento, desilusão, retomada e execução: custou 120 milhões de dólares (parte do diretor, que investiu em sua vinícola por muito tempo visando o filme) e arrecadou, mundo, pouco acima de 14 milhões.

Metrópole: mais do que uma referência, um autêntico ancestralato.

Mas talvez seja daqueles flops que valham a pena assistir. Não é um filme convencional - pelo menos, até um certo ponto, visto mais abaixo. Mas, até lá, a história se passa em uma cidade fictícia no lugar de Nova York chamada New Rome, passando por uma forte crise habitacional, em que uma velha área deve ser derrubada para um novo investimento: a competição é entre o projeto do prefeito, que quer instalar cassinos e gerar empregos, e o do arquiteto que quer transformar a cidade em uma utopia urbana, especialmente de posse de um novo material empregado em construção que inventou, chamado megalon. Mas essa reforma é bem cara, e com resultados não imediatos.

Retrofuturismo at its finest.

Temos aqui um "vilão clássico" de alguns filmes: a corrupção pela especulação imobiliária, e a participação da Máfia nisso e seu envolvimento com a política. Sendo o diretor quem é, não é exatamente um elemento desconhecido de sua obra. Essas ligações, por outro lado, dão espaço para mais níveis do roteiro, que inclui política e filosofia, além de estética - tem uma ótima resenha no Cinegnose sobre isso.

Mais do que a questão estética, explorando com excelência o neo-classicismo (além do art-decô) urbano de NY, a "Nova Roma" se mostra no conflito romano histórico entre os senadores Marcos Túlio Cícero e Lúcio Sérgio Catilina, em que o primeiro acusava o segundo de conspiração para almejar o poder. O famoso discurso de Cícero, as Catilinárias, é citado na fala indignada do prefeito. Não é o único monólogo pré-existente inserido no texto, o Ser ou Não Ser shakespeariano também está lá.

O passo de fé para o amor e a esperança.

O conflito de projetos é o conflito de dois homens e suas visões: pelo cassino e o pragmatismo, o prefeito Cícero, pela utopia, o arquiteto César Catilina; respectivamente interpretados por Giancarlo Esposito e Adam Driver. Eles lideram um elenco de peso com - dos nomes que eu conheço - Aubrey Plaza (Wow Platinum), Shia LaBeouf (Clodio Pulcher), Jon Voight (Hamilton Crassus III), Laurence Fishburne (Fundi Romain), Dustin Hoffmann e mesmo uma Talia Shire (Constance Crassus Catilina), a "Adriaaaaaan" de Rocky - um Lutador e Connie Corleone.

E é também em suas atuações que se vê a marca autoral do diretor, que consta estimular improviso e a mudança de última hora nas falas; ajudando na - boa - estranheza em tudo o que se vê. O elenco me parece estar plenamente de acordo com tudo, resultando em personagens complexos e caricatos ao mesmo tempo, entre conspiradores e invejosos, aproveitadores e idealistas, parcialmente firmados não só ao que se espera deles em uma história, mas a seus papéis na História.


A Nova Roma em si é um espetáculo. É exagerada e cafona, seja em cenários internos e externos, seja em comportamentos e costumes - como se espera que a Antiga Roma seja -, como na hora do declínio do império. É uma overdose visual que Coppola nos apresenta, e ela é irretocável.

Havendo considerado tudo isso... 

Não me escapa que, mesmo assim, apesar de todo o experimentalismo, há muito de um cinema convencional no núcleo de tudo. Os bons triunfam, os maus perdem e perecem - ou, como muito bem me alertaram, pode fazer parte da engenho/ingenuidade proposital do filme, sendo portanto uma questão estética. 

Ok até aqui, mas me incomoda um pouco que, na hora da punição, a morte de Aubrey Plaza esteja explícita, e a de Shia LaBeouf, por maior que seja a referência ao destino de Mussolini (digna de um personagem radical de direita), é apenas implícita - como dizem, sem corpo, sem crime: a pecadora é gráfica e sumariamente punida, o pecador é deixado ao tribunal da mente do espectador. Acho estranho para os dias de hoje, mas isso pode ser apenas eu.

A amante desprezada.

Ainda, a cidade de Nova Roma ganha: a crise habitacional dado momento é substituída por uma catástrofe, quando o satélite soviético Cartago despenca sobre a cidade quase a destruindo por inteiro, e o megalon é a única solução possível. Não bastasse, as coisas se consertam na medida do possível, com o arrependimento de Esposito e o oportunismo de Voight, este, ao fim da vida - e do filme - dedicando sua vasta fortuna em benefício da reforma: a massa apenas aparece para ser manipulada por parte da elite da cidade, e salva pela outra parte.

Perdura também uma "lição de moral" bem ao gosto do americano médio, sobre a necessidade de "ir em frente", to move on, e deixar as dores e culpas do passado no que já foi, aceitar e ficar bem com as novas conquistas. 

Por último, há também uma espécie de ranço ayn-randiano no protagonista: afinal, é um arquiteto genial incompreendido por muitos, invejado e detestado por gente em posição de mando e que não tem seu brilho. Aqui, ele ainda é o inventor do megalon, e mesmo consegue manipular o próprio Tempo, como figura para a visão que ele tem. Acho que particularmente essa referência ideológica é inevitável para o diretor, cuja geração não conseguiu escapar ao fascínio dessas ideias.

A coisa toda conspira na direção de um final feliz. Bem, há uma resenha muito boa de Raissa Ferreira em seu blog, que fala, entre outras coisas, da escolha pelo otimismo e esperança - algo cada vez mais necessário em nossas histórias, nestes dias que passam. O que é corretíssimo - mas, a princípio, me passou a ideia de que seria um engessamento de alguma fórmula antiga. Novamente... pode ser apenas eu.

Tudo isso, portanto, torna o filme não tão avançado como a forma tanto sugere... mas, definitivamente, não impede de ter seu brilho próprio.

Sendo assim, no final das contas fico feliz que Megalópolis tenha sido feito: e recomendo de coração.