Alerta: SPOILERS A SEGUIR.
Megalópolis (2024) é a ousadia de um veterano do cinema. Francis Ford Coppola, ao longo de décadas de carreira, dirigiu/produziu clássicos do cinema americano como Drácula de Bram Stoker, Apocalypse Now e, claro, a trilogia de O Poderoso Chefão, e agora nos brinda com uma obra de ficção científica.
É um filme autoral, com uma história de 40 anos entre a concepção, desenvolvimento, desilusão, retomada e execução: custou 120 milhões de dólares (parte do diretor, que investiu em sua vinícola por muito tempo visando o filme) e arrecadou, mundo, pouco acima de 14 milhões.
Mas talvez seja daqueles flops que valham a pena assistir. Não é um filme convencional - pelo menos, até um certo ponto, visto mais abaixo. Mas, até lá, a história se passa em uma cidade fictícia no lugar de Nova York chamada New Rome, passando por uma forte crise habitacional, em que uma velha área deve ser derrubada para um novo investimento: a competição é entre o projeto do prefeito, que quer instalar cassinos e gerar empregos, e o do arquiteto que quer transformar a cidade em uma utopia urbana, especialmente de posse de um novo material empregado em construção que inventou, chamado megalon. Mas essa reforma é bem cara, e com resultados não imediatos.
Retrofuturismo at its finest. |
Temos aqui um "vilão clássico" de alguns filmes: a corrupção pela especulação imobiliária, e a participação da Máfia nisso e seu envolvimento com a política. Sendo o diretor quem é, não é exatamente um elemento desconhecido de sua obra. Essas ligações, por outro lado, dão espaço para mais níveis do roteiro, que inclui política e filosofia, além de estética - tem uma ótima resenha no Cinegnose sobre isso.
Mais do que a questão estética, explorando com excelência o neo-classicismo (além do art-decô) urbano de NY, a "Nova Roma" se mostra no conflito romano histórico entre os senadores Marcos Túlio Cícero e Lúcio Sérgio Catilina, em que o primeiro acusava o segundo de conspiração para almejar o poder. O famoso discurso de Cícero, as Catilinárias, é citado na fala indignada do prefeito. Não é o único monólogo pré-existente inserido no texto, o Ser ou Não Ser shakespeariano também está lá.
O passo de fé para o amor e a esperança.
O conflito de projetos é o conflito de dois homens e suas visões: pelo cassino e o pragmatismo, o prefeito Cícero, pela utopia, o arquiteto César Catilina; respectivamente interpretados por Giancarlo Esposito e Adam Driver. Eles lideram um elenco de peso com - dos nomes que eu conheço - Aubrey Plaza (Wow Platinum), Shia LaBeouf (Clodio Pulcher), Jon Voight (Hamilton Crassus III), Laurence Fishburne (Fundi Romain), Dustin Hoffmann e mesmo uma Talia Shire (Constance Crassus Catilina), a "Adriaaaaaan" de Rocky - um Lutador e Connie Corleone.
E é também em suas atuações que se vê a marca autoral do diretor, que consta estimular improviso e a mudança de última hora nas falas; ajudando na - boa - estranheza em tudo o que se vê. O elenco me parece estar plenamente de acordo com tudo, resultando em personagens complexos e caricatos ao mesmo tempo, entre conspiradores e invejosos, aproveitadores e idealistas, parcialmente firmados não só ao que se espera deles em uma história, mas a seus papéis na História.
A Nova Roma em si é um espetáculo. É exagerada e cafona, seja em cenários internos e externos, seja em comportamentos e costumes - como se espera que a Antiga Roma seja -, como na hora do declínio do império. É uma overdose visual que Coppola nos apresenta, e ela é irretocável.
Havendo considerado tudo isso...
Não me escapa que, mesmo assim, apesar de todo o experimentalismo, há muito de um cinema convencional no núcleo de tudo. Os bons triunfam, os maus perdem e perecem - ou, como muito bem me alertaram, pode fazer parte da engenho/ingenuidade proposital do filme, sendo portanto uma questão estética.
Ok até aqui, mas me incomoda um pouco que, na hora da punição, a morte de Aubrey Plaza esteja explícita, e a de Shia LaBeouf, por maior que seja a referência ao destino de Mussolini (digna de um personagem radical de direita), é apenas implícita - como dizem, sem corpo, sem crime: a pecadora é gráfica e sumariamente punida, o pecador é deixado ao tribunal da mente do espectador. Acho estranho para os dias de hoje, mas isso pode ser apenas eu.
A amante desprezada. |
Ainda, a cidade de Nova Roma ganha: a crise habitacional dado momento é substituída por uma catástrofe, quando o satélite soviético Cartago despenca sobre a cidade quase a destruindo por inteiro, e o megalon é a única solução possível. Não bastasse, as coisas se consertam na medida do possível, com o arrependimento de Esposito e o oportunismo de Voight, este, ao fim da vida - e do filme - dedicando sua vasta fortuna em benefício da reforma: a massa apenas aparece para ser manipulada por parte da elite da cidade, e salva pela outra parte.
Perdura também uma "lição de moral" bem ao gosto do americano médio, sobre a necessidade de "ir em frente", to move on, e deixar as dores e culpas do passado no que já foi, aceitar e ficar bem com as novas conquistas.
Por último, há também uma espécie de ranço ayn-randiano no protagonista: afinal, é um arquiteto genial incompreendido por muitos, invejado e detestado por gente em posição de mando e que não tem seu brilho. Aqui, ele ainda é o inventor do megalon, e mesmo consegue manipular o próprio Tempo, como figura para a visão que ele tem. Acho que particularmente essa referência ideológica é inevitável para o diretor, cuja geração não conseguiu escapar ao fascínio dessas ideias.
A coisa toda conspira na direção de um final feliz. Bem, há uma resenha muito boa de Raissa Ferreira em seu blog, que fala, entre outras coisas, da escolha pelo otimismo e esperança - algo cada vez mais necessário em nossas histórias, nestes dias que passam. O que é corretíssimo - mas, a princípio, me passou a ideia de que seria um engessamento de alguma fórmula antiga. Novamente... pode ser apenas eu.
Tudo isso, portanto, torna o filme não tão avançado como a forma tanto sugere... mas, definitivamente, não impede de ter seu brilho próprio.
Sendo assim, no final das contas fico feliz que Megalópolis tenha sido feito: e recomendo de coração.
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