O Prêmio Argos 2020 de Literatura Fantástica está oficialmente aberto.
Através dele, os sócios do Clube de Leitores de Ficção Científica escolherão suas obras favoritas lidas no ano de 2019, obras originais em Português, nas categorias Conto, Antologia/Coletânea e Romance favoritos.
Para poder votar, apenas mediante ingresso no Clube via clfc.com.brE participação da lista de e-mail oficial.
A votação vai até Domingo, 22 de Novembro de 2020, 23:59.
Lembrem-se:
* as obras candidatas serão as que vocês sugerirem na cédula, DESDE QUE
* sejam obras originais de 2019 e em língua portuguesa. Reescritas e traduções do estrangeiro não contam.
Purgatório da beleza e do caos: Silicone XXI, de Alfredo Sirkis (Record, 1985)
A morte recente de Alfredo Sirkis (1950-2020), político e ativista ambiental, acabou me fazendo finalmente ler seu único romance no campo da ficção científica, lançado em 1985 e situado em um Rio de Janeiro no distante ano de 2019.
A obra é claramente influenciada por Blade Runner: o Caçador de Androides (1982), com uma investigação policial, androides para fins sexuais, arranha-céus e carros aéreos, mas estes elementos levam à criação de um "romance policial futurista", consta na capa da frente ("seu primeiro roman noir", conforme informação da quarta capa): em vez de se tornar apenas uma cópia, afasta-se da referência original e traz questões próprias nossas.
E como bom noir, uma investigação policial encontra em seu caminho uma conspiração de alcance apocalíptico e nacional, no caso. Personagens no escuro, nem sempre as peças se encaixam a princípio, uma galeria de tipos singulares: Sirkis talvez - talvez - aqui tenha problemas de timing de apresentação e caracterização dos personagens. Pareceu-me que alguns personagens mais saem da cartola do que são realmente apresentados. Tive a impressão, ainda, que só pela metade do livro que a história, de fato, engrena - e engrena bem.
Costumo dizer que ficção científica envelhece rápido e envelhece mal, e aqui não é exceção. Claro, toda obra e autor são frutos de seu tempo, e talvez seja por isso que a FC padeça em especial por causa disso: suas extrapolações - conceituais ou tecnológicas - são calcadas no que o autor tem ao seu redor, entre a vivência cotidiana e hipóteses científicas de então.
Mas Silicone XXI é engraçado: há aquilo que envelheceu, há aquilo que se manteve atual e há aquilo inesperadamente atual. A saber:
Naquele futuro eletrônico sem ser digital; este Rio de 2019 não chegou nem perto de ocorrer, assim como aquela Los Angeles de 2017. Mas é mais do que armas laser, robôs, androides sexuais e aerocarros que, até aqui, nunca existiram, convivendo com a VARIG e micro-disquetes de computador que, se existiram, já se foram há tempos: há uma malandragem carioca como é descrita e escrita que nos faz pensar em algum filme de Hugo Carvana, entre os ditos tipos cariocas e seus diálogos... eu não sei se ainda valeria.
O clima noir não parece resistir muito ao otimismo do ideário do autor: o Rio retratado dispõe de metrô, monotrilho, calçadas rolantes e aerotransporte: para travessias sossegadas mais longas, dirigíveis a hélio. Na Avenida Rio Branco há um calçadão volante, o Centro é uma parte preservada em que não há mais novas construções. O Brasil é um regime parlamentarista onde predomina a coalizão entre sociais democratas e verdes. O Programa Nuclear Brasileiro - grande questão de época - foi desativado por plebiscito em 2005, e comunidades alternativas longe dos grandes centros urbanos prosperam, social e economicamente, mantendo autonomia graças à energia solar, e uma própria diversidade ideológica e religiosa, quando aplicado, em respeito umas com as outras.
As preocupações de Sirkis com o meio ambiente não podiam deixar de estar presentes: o início do livro se dá no Olympus Aerotel, uma edificação encravada no meio do Morro Dois Irmãos, cartão postal da zona sul do Rio de Janeiro e, desde 1992, reserva ambiental. O cenário evoca um certo espanto tanto pelo conceito arrojado de um prédio localizado em tal localidade, acessível somente por aeronaves; quanto pelo desplante facilmente acreditável por estar nesse lugar: dá a impressão que o Rio de Janeiro é uma cidade em que leis de urbanismo, paisagismo e preservação ambiental parecem apenas prorrogar o que é inevitável na melhor das hipóteses, e na pior delas ser apenas outro nome para "taxa de suborno".
Mas quem poderia se opor a tudo isso, senão elementos reacionários de contornos positivistas, assim como oriundos de radicais das Forças Armadas - no texto, cabe salientar, perfeitamente ajustadas na atual sociedade - que, bêbados na crença de seus delírios e discursos grandiloquentes, vale tudo para impedir o avanço do socialismo e homossexualização programada, até mesmo um atentado à adutora do Guandu: extremismo confesso e desavergonhado que, divulgado pela mídia interessada em ibope, ganha imenso apoio popular...
... familiar?
Em outra inesperada atualidade, um alvo das forças reacionárias é a "comunidade andrógina", abordando a questão atual de pessoas transgêneras e a transfobia, encontrando apoio de parte da sociedade a este discurso doentio.
Concluindo: Silicone XXI é um bom registro de época, abordando questões de então e projeções dentro do credo do autor, com erros que nos fazem sorrir, e acertos nos fazem refletir e mesmo nos preocupar. É, também, uma aventura policial, e pode - e deve - ser lido desta maneira, para quando se preferir. Aliás, na batida de ser uma obra pop, a edição providencia capa e ilustrações de miolo seguindo a estética dos quadrinhos sendo feitas por Al Voss, artista franco-alemão que morou no Brasil, projetou capas para os Mutantes e chegou a trabalhar para a Métal Hurlant, sendo conhecedor da linguagem das HQs: o aerógrafo de capa envelheceu mal particularmente bem.
Vizinhanças do estranho: Metanfetaedro, de Vic Vieira/Alliah (Tarja Editorial, 2012)
Metanfetaedro é uma coletânea de Vic Vieira, então assinando como Alliah. Saiu pela extinta editora Tarja, dedicada à publicação de literatura fantástica. O livro tem oito contos independentes, dois deles interligados no sentido de terem as mesmas protagonistas. Acompanham os contos ilustrações de capa e miolo de sua própria autoria.
Os escritos se propõem a seguir a corrente do New Weird, tornando-se até então uma das poucas publicações assim aqui no Brasil.
Pessoalmente, eu tenho a impressão que, do New Weird, há a tentação de cair em um rococó de adjetivos e nonsense que pode facilmente suplantar a própria história sendo contada: o que, conforme se apresenta, não é o caso aqui. Eu e Gerson Lodi-Ribeiro chegamos a receber um conto do autor em 2012 para a antologia que coordenamos, Super-Heróis (Draco, 2013), mas que infelizmente não pudemos aproveitar, e era completamente da mesma safra.
A Tarja, aliás, publicou obras dentro do subgênero até então inéditas no Brasil, como Alquimia da Pedra, de Ekaterina Sedia e a primeira tradução de China Miéville no Brasil de Rei Rato, ao contrário do que erroneamente já se pôde ler por aí.
O autor é ativista trans, havendo sido um dos proponentes do Manifesto Irradiativo, destinado à promoção da visibilidade das identidades não-mainstream étnicas, religiosas ou de gênero. Junte isso com sua formação inicial em oceanografia e posterior em artes plásticas, pensamento político mais puro tesão de quem então estava em seus 20 anos e obtemos um mosaico cinético de ações e referências explodindo de si mesmo por todo o livro.
E porque só se tem 20 anos uma vez, temos um dos meus dois contos favoritos do livro, por destoar de um discurso de ação espetaculosa de descrições ao usar o estranho para basear para uma história de cunho pessoal e de perda. Em O Jardim de Nenúfares Suspensos, a situação envolve a perda de alguém marcante ainda na fase universitária, daquela sensação de vida interrompida testemunhada bem antes do que "deveria ser", isto é, somente no devido tempo e idade de nossos avós: esperança revelada falsa, por motivo súbito e irracional, e a prontificação da saudade que muito provavelmente não irá embora... impressões que só aumentam com a narração em primeira pessoa.
Contemplafantasiação é um dos poucos escritos que li na vida que eu gostaria de ver animados. Não filmados: animados. Elementos e paletas diferentes voam, sucedem-se e se mesclam, em uma história trágica de um amor proibido, como são essas histórias. Tabus sociais e culturais impedem a felicidade das protagonistas de povos distintos, onde a homoafetividade do relacionamento é o de menos - não obstante uma oposição masculina, brutal e predominante.
Morgana Memphis contra a Irmandade Gravibramânica e Morgana Memphis Dividindo por Zero estrelam o mesmo par de personagens amorais, a citada Morgana Memphis e Amadahy, protagonistas de ação contra o excesso de desmandos do mundo em que se vive. O primeiro conto ganhou nos dias que passam uma pequena e perturbadora atualidade, com um populista de extrema direita no poder com vias de ser reeleito, além de religiões organizadas reacionárias que se acham detentoras de todos os motivos para oprimir o outro: sim, se as personagens são amorais como eu disse acima, podendo provocar a morte e acidente de passantes ocasionais sem sequer piscar o olho, quem elas enfrentam são coisas muito piores.
O outro, no caso, são uma população marginalizada de alienígenas assexuados que culturalmente adotaram para si a biologia mainstream, procurando se integrar e para isso buscando cirurgias de modificação corporal. Mas tudo o que conseguem é brutalidade e repulsa: "Grupos conservadores radicais, que havia pouco tempo habituarem-se a tolerar ciberorganiformes e animorfos, ficaram entusiasmados com o surgimento de uma nova identidade na praça e puseram-se imediatamente a protestar contra os novos translienígenas." (p. 91)
Mas isso é uma coisa em comum pelos mundos apresentados nos contos: a crueldade, extrapolação das injustiças do mundo real elevadas à enésima potência. Isso fica especialmente claro em Tupac Amarú III, onde o massacre do que seriam povos nativos andinos não encontra limites, macerando sua carne e espírito através de gerações, e Escolhidos ou deuses manifestados terão que cortar um dobrado para salvar ou vingar seu povo, com baixas chances de sucesso.
Tema recorrente é a cidade, a paisagem urbana, não apenas decadente mas futurista, arruinada porém não por isso menos viva e, se bobear, com intenções próprias. Do chão que absorve o sangue e o resto dos tombados para gerar energia para si a planos de fuga interdimensionais, a cidade está lá, um deus onipresente que se acostuma a não pensar nele, embora nos seja inescapável vê-lo ao nosso redor, a cidade tem seus próprios planos - e, à maneira dos deuses, planos insondáveis: em Uma Cidade Sonhando Seus Metais, a cidade é praticamente a personagem principal, ou assim pode ser lido. O tipo de conto que poderia facilmente constar na antologia Cidades Indizíveis (Llyr Editorial, 2011), por exemplo - e que, certamente, enriqueceria o livro.
O descaso pela vida do outro tornado mau hábito corriqueiro é fotografado especialmente nos contos envolvendo crianças. Como na vida real, são as que mais sofrem, nos escritos, não há porque ser diferente. Não há quem as salve, nem quem vele por elas. Suas vidas são breves, abandonadas e com fins violentos. Moleque é o conto que abre o livro, descrevendo dois irmãos separados por um oceano e unidas por tudo o que há contra sua existência. Uma delas ainda tem o conforto da companhia gentil de uma Iara, Mãe D'Água, porém em fim de carreira quando os mares e rios estão completamente poluídos. Mas é uma exceção.
Por último, Metanfetaedro, o conto que deu nome ao livro. Este foi reeditado na Fractais Tropicais (SESI-SP Editora, 2018), importante antologia coordenada por Nelson de Oliveira que caracteriza autores das ditas três diferentes ondas da ficção científica brasileira. Seu texto foi reescrito, em uma nova versão, no caso, beneficiando-se de um polimento. A história trata - se entendi - a respeito de bloqueio criativo, envolvendo ainda hipergeometria e drogas transcendentais - bem, metanfetaedro já está no título, afinal: e mais é tentar explicar o que deve ser curtido, sentido e viajado.
Espero que essa coletânea, algum dia, possa ser republicada, e que o autor possa ter o destaque que, definitivamente, merece.
Le Transperceneige é uma obra que já alcançou mídias diferentes: as originais em quadrinhos, o filme com Chris Evans em 2013 e uma série nova na Netflix, agora em 2020. No Brasil, as três primeiras HQs (de 1982, 1999 e 2000) são encontradas em um só volume pela editora Aleph, O Perfuraneve. O quadrinho original foi criado por Jacques Lob (roteiro) e Jean-Marc Rochette (desenhos), e as demais publicações contaram com outros roteiristas.
O cenário é sobre quando o mundo entra em um período repentino de glaciação e os sobreviventes da Humanidade estão presos em uma composição de trem de mil vagões, rodando ano após anos por um circuito operacionais de linhas de trem. Não há para onde ir, apenas seguir. Todos lá fora morreram, as cidades são mausoléus brancos e congelados. O trem é uma maravilha da engenharia que, indica o nome, supera qualquer amontoamento de neve que bloqueie o circuito.
E a história é sobre como, dentro do trem, acontece uma representação da luta de classes, entre muitos que têm pouco e poucos que têm muito - e que nem no fim do mundo isso, dado a chance, mudará.
A ideia de sobreviventes da Humanidade em um último veículo selado contra o meio ambiente hostil não é nova, mas é sempre bom ver o que um novo take tem a acrescentar. A FC oferece, via de regra, naves gigantes, ditas geracionais, levando séculos e séculos em sua viagem por um lar às vezes cada vez mais mítico, até mesmo com seus habitantes se esquecendo de suas origens e mesmo sua missão. Na série original de Jornada nas Estrelas temos For the World is Hollow and I have Touched the Sky (3x08), já em The Orville a premissa é vista em If the Stars Should Appear (1x04). Uma disparidade de classes a bordo do veículo selado pode ser sugerida na frota de naves sobreviventes à mercê dos cylons na série Galactica original, assim como com o remake de 2004; e mais recentemente na espaçonave Órion vista na minisérie Ascension (2014), projeto este que infelizmente apenas ficou na mini-série.
Há mais tantos outros exemplos, independente da mídia, mas a vantagem básica, ao meu ver, é contar uma distopia social a bordo de um trem, que por mais futurista que possa ser concebido, é algo mais facilmente reconhecível pela audiência, alcançando assim mais gente - mesmo que questões sobre como linhas de trem continuariam funcionais sem manutenção (não é somente a respeito da locomotiva e da composição) tenham ficado em aberto.
A estrutura básica do trem se dá com os últimos vagões preenchido pelos pobres, em péssimas condições, que a medida que se avança pela composição até a locomotiva o nível de vida melhora consideravelmente: de comida a água encanada até algo que em geral não pensamos e damos por garantido, como espaço livre.
O Perfuraneve (2015), editora Aleph.
A primeira história em quadrinhos - a edição da Aleph traz as três primeiras histórias em um só volume. A primeira história apresenta a ideia e a ambientação. Um passageiro dos vagões dos fundos almeja avançar até a locomotiva. A diferença de classes aqui existe, mas a subversão não é o mote em si, ainda que a história, entretanto, mais foque em reações humanas quando o tema é 'farinha pouca, meu pirão primeiro': a "burguesa consciente" querendo ajudar o revolucionário que de revolucionário não tem exatamente algo é comovente. E em tempos de pandemia, a ideia de contágio aqui presente, devido às péssimas condições dos últimos vagões, tem um incômodo senso de atualidade.
Os enquadramentos privilegiam, como não pode deixar de ser, closes e ambientes fechados. Na primeira HQ, salvo a locomotiva, o trem tem um aspecto normal, por mais que a arte no geral privilegie os expressivos rostos dos personagens, pelo belo traço de Jean-Marc Rochette.
O Expresso do Amanhã, 2013
O filme, dentro dos limites de tempo da exibição, apresenta uma situação de revolução iminente, com os desfavorecidos dos últimos vagões preparando-se para mais uma tentativa. Quinze anos já decorreram desde a partida do trem.
Além da adaptação entre formatos, há uma adaptação da história, mais se firmando nos elementos base presentes nos quadrinhos do que investindo em uma tradução entre mídias diferentes: mas o protagonista que anseia em alcançar a locomotiva, o coração e controle daquele mundo e por tabela das condições em que ele vivia, está lá.
É um retrato pouco sutil das questões de classe, com evocações até quando crianças eram utilizadas nas fábricas da Revolução Industrial para ocuparem espaços apertados e mexerem em maquinário perigoso, sem a menor proteção. Crianças pobres (e pretas, por tabela), esclarecido isto: enquanto crianças dos passageiros que pagaram melhores passagens tinham educação garantida de forma também a perpetuar uma mentalidade de descaso contra os menos favorecidos e apreciar a ordem, o status quo.
Chris Evans está bom como sempre, com o personagem finalmente desmoronando sob a confissão de seus pecados, próximo ao final. Ed Harris como uma espécie de Mágico de Oz/Grande Irmão orwelliano, o mítico e onipresente porém nunca visto Wilford, responsável pela criação do trem e do destino de todos a bordo. O elenco conta ainda com Octavia Spencer, John Hurt, Kang-ho Song (de Parasita) e, em um papel adoravelmente detestável, Tilda Swinton. Dirigido por Bong Joon Ho, também de Parasita, que aliás assina como escritor na nova série.
Uma questão de lados.
A série dá a impressão de ser na mesma continuidade do trem, verificável por detalhes como o logotipo das Indústrias Wilson e a citação do elemento CW7 utilizado para o resfriamento global, assim como o problema com a droga koron - mas é um desenvolvimento próprio. Passa-se aproximadamente sete anos após a partida, e o esfriamento glacial se dá como explicado no filme, com o adendo de uma guerra havendo esquentado ainda mais o planeta, e a emenda saindo pior que o soneto.
Sendo um ambiente selado, o meio-ambiente precisa ser mantido em equilíbrio, para que não haja escassez: mas quando um assassinato ocorre, a elite do trem sente que o meio ambiente social pode estar em perigo. Entra em cena um dos protagonistas, um dos sobreviventes do fundo do trem, que antes do fim do mundo era detetive de homicídios - o único detetive a bordo. Com esse mote, o funcionamento social da composição vai sendo apresentado, com personagens por vezes envolvidos em segredos sórdidos.
Os passageiros se dividem em quatro classes, de acordo com o preço da passagem que compraram, ganhando vagões e opções de lazer cada vez menores: a primeira classe, a segunda e a terceira - e aí tem os tailers, os do fundo do trem, que forçaram sua entrada quando o desastre se abateu no planeta. Desde então, vêm sendo tratados como incômodo para o resto da ordem social: há que se alimentá-los de alguma forma, para prevenir tumultos como no passado. E mesmo a ideia cruel de apenas desatrelar os últimos vagões para se livrarem deles é vista com o receio por uma revolta na terceira classe, se isso acontecer.
No formato de série, o mundo pode aqui ser bem mais detalhado do que no filme, como a situação da tensão social a bordo. Mais do que pano de fundo, ela é parte da motivação dos personagens, entre a manutenção do status quo, sua derrubada e aquilo que se faz para se viver melhor.
O diretor aposta no momento atual, e não se enganem: esta também é uma obra tão política quanto Parasita, já citado. Não é à toa que o personagem principal é um negro, que não raro é espancado por seguranças fardados e blindados. Os dias em que começo a escrever essa resenha se sucedem ao do assassinato cruel de George Floyd nos EUA por um policial branco, e os violentos protestos que se seguiram.
Como na vida real com o S. S. Titanic, não há escaleres para todos, especialmente para as classes mais baixas.
Com dez episódios, a série termina em um belo gancho para a 2a temporada, ainda que tenha me parecido meio tirado da cartola. Mas o resultado, no cômputo geral, é bom e eu recomendo.
A quem aportar por aqui... nesta sexta, dia 17/07, às 19h, tem live no canal da Nova Frota BR sobre worldbuilding e Star Trek, participando este vosso criado. Será aberto a perguntas. Espero vcs lá!
Psicopompo: porque a luz pode ser tão apavorante quanto as trevas.
Acaba sendo um pouco difícil para mim falar algo mais do que já foi dito sobre Psicopompo, até mesmo nas páginas de apresentação da obra. Ainda, tem uma entrevista com eles aqui, e outra, de 2015, aqui. Só posso dizer que tudo aventado foi entregue, e a contento.
Psicopompo: após tantos anos sendo planejado, eis finalmente o fruto dourado do sol.
A história é relativamente simples: em uma disputa de futebol entre meninos no campinho de uma favela, a batalha cósmica que define o fim de uma era ou ciclo está acontecendo. O anonimato do evento não torna o confronto menos importante ou decisivo, enquanto agentes imortais tentam influenciar sua decisão.
Eu disse, "relativamente".
O enquadrar e o reenquadrar.
O texto é de Octavio Aragão e a arte, de Carlos Hollanda, e como em toda boa parceria, um influenciou o outro durante o processo. Ambos são acadêmicos e profissionais com interesses e formação férteis para pensar em significados: quadrinhos, ficção científica, design, astrologia, arte e história da arte. O resultado é uma rica colheita esotérica-semiótica hipnotizante, especialmente em se tratando das cores... as cores... ah-ham. A arte passeia por significados não totalmente óbvios na primeira passada de olhos. É das obras que gostamos de apreciar, após a história lida, por suas páginas.
E Megiddo, quem diria, foi parar em Irajá.
Páginas estas que demoraram. Foram concebidas, tratadas, refinadas, refeitas desde 2014, entre reconceituações e a própria vida que passa diante de nós, ora tumultuada, ora rápida demais. Mas o resultado está aí. Valeu por todo esse tempo de espera? Sem dúvida.
Série disponível na Amazon Prime Vídeo, Carnival Row nos leva a um mundo de fantasia (wiki oficial em inglês aqui) que alcançou a Revolução Industrial. Existe magia, deuses, seres míticos como fadas, faunos, kobolds e etc - assim como máquinas a vapor, experimentos em eletricidade, dirigíveis de ataque, imperialismo das nações, (aparente) monoteísmo mainstream, racismo institucionalizado e estratificação social. Fantasia steampunk cai bem aqui.
A série é centralizada principalmente na cidade do Burgo, capital do país de mesmo nome, que o tempo todo tem ares da Londres vitoriana, com sua arquitetura, costumes sociais, religião, moda vigente e mesmo uma série de assassinatos sanguinolentos. A Carnival Row do título é a zona boêmia da cidade.
O conflito social e racial se dá de algumas formas: a guerra de expansão entre o Burgo e o temível Pacto, outra nação humana mas que pouco vemos, além de se mostrarem temíveis e cruéis inimigos, leva as fadas e outros não-humanos, naturais do continente e das terras que se tornaram o campo de batalha a buscarem refúgio na capital, onde são tratados como cidadãos de segunda classe sujeitos a subempregos ou contratos de servidão, gerando um problema de criminalidade, do tráfico de drogas à prostituição.
Burgo: pseudo-Londres vitoriana muito eficiente...
Como um espelho distorcido de nosso mundo, as referências históricas nossas estão lá: as nações conflitantes são de seres humanos brancos, ou brancos ao comando. No Burgo, há seres humanos negros, embora possam ser encontrados na nata da sociedade: é mencionado que entre brancos e negros já houve conflito e rejeição, mas isto havia sido superado. Afinal, cor de pele parece bobagem, quando existem pessoas com chifres e cascos ou asas para discriminar.
Entra em cena um dito romance proibido entre uma humana de alta classe e tradição e um fauno novo rico: o que não impediu de ser entre uma branca e um negro, pois não há exclusão de papéis nas espécies apresentadas. Este romance, portanto, envolve três conflitos: o social (o fauno novo rico se muda para uma vizinhança de 'gente de bem'), o entre espécies (humano e não-humano) e um que diz mais à nossa realidade do que à apresentada que é o entre etnias.
... de um mundo complexo e instigante.
Outro romance proibido, inter-espécies, esconde, na verdade, outro aspecto da discriminação que é revelado no passar dos episódios, quando o humano da relação descobre que é um meio-fada, e mestiços são desprezados pelos seres humanos.
Cabe notar que conflitos sociais e políticos têm tido maior destaque em tempos recentes, na produção de conteúdo fantástico para a TV/stream, sob a forma de alegorias ou utilizando metáforas mais pontuais. O filme Bright (2017) traz as raças de fantasia para uma Los Angeles atual de alta criminalidade, a mini Years and Years (2019) é 'near future' sobre a ascensão da extrema direita na Inglaterra, entre outros exemplo - e Carnival Row certamente não é exceção.
Ótimos valores de produção.
Um ponto que ainda gostei foi seu worldbuilding: mais do que espécies de vida exóticas e geografia de países imaginários, há uma direta influência no mundo como molda o personagem, define seus ódios e afetos, e pela interpretação dos atores somos levados a crer naquilo tudo - as duas dores de Vignette por sua amada biblioteca, por exemplo. O medo do povo fada diante de toda uma estrutura social que depõe contra eles. Tudo isto está bem conduzido.
Do lado negativo desta primeira temporada, alguns desenvolvimentos pessoais me pareceram apressados demais, provavelmente devido à temporada ter somente 8 episódios: o romance proibido de Imogen e Agreus me soou um pouco rápido para acontecer, assim como a revelação da verdadeira personalidade de Sophie Longerbane, o oposto do sugerido a partir de quando ela nos é apresentada.
No elenco: Professor Moriarty, ao seu dispor.
Do elenco, tudo considerado, todos estão bem, apesar de não exatamente excepcionais: Orlando Bloom e Cara Delevigne como o casal principal que acaba se reconectando após um início turbulento, em alguns pontos me lembrando, bem, Orlando Bloom e Kyra Knightley em Piratas do Caribe: tanto lá quanto cá o personagem de Orlando tem uma origem órfã rodeada de mistérios que leva a uma herança mista e lealdade dividida, enquanto sua contraparte amorosa se mantém virtuosa quanto àquilo e aqueles que ama, arriscando-se não importa o quê; apesar de, em si, tanto Vignette Stonemoss e Elizabeth Swann terem peculiaridades bem distintas, assim como William Turner e Rycroft Philostrate não serem definitivamente a mesma pessoa.
Faixa-bônus: Indira Varma, a eterna Niobe (sra. Lucius Vorenus) de Roma-da-HBO.
Assisti a Além do Universo (The Beyond, 2017), do diretor estreante Hasraf “HaZ” Dulull, baseado em seu próprio curta de 2014, Project Kronos (trailer deste, aqui). O filme é montado em estilo documentário/found footage, com atuações de entrevistas e imagens sempre como se fossem do arquivo de filmes feitos para alguma outra função, esta de natureza técnica. Cabe ainda a nota de que é um filme independente, com o diretor egresso da área de efeitos visuais.
A história ocorre ainda no Século XXI, a respeito de uma agência espacial de esforço internacional, e quando uma estranha anomalia surge próxima da Terra, gerando uma distorção gravitacional estranha. Descobre-se que é um buraco de verme que leva a um planeta em outro sistema solar, onde contato com alienígenas é travado. Estranhas esferas negras surgem sobre a superfície terrestre gerando medo e uma reação negativa dos países, mas no final, era tudo para a proteção da Humanidade, conforme acaba se revelando.
O filme mistura diversas referências e influências. A ideia do “alien incognoscível” não é novidade desde 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), assim como o voo por um túnel cósmico [idem, e ainda Contato (1997) e, mais recentemente, Interestelar (2014)] para encontrar os tais aliens com uma meia mensagem compreensível mas de fundo positivo, além de coisas nem todas explicadas.
Ainda acena para um tema relativamente recente, o transhumanismo, inserindo cérebros vivos em corpos totalmente artificiais, para que se pudesse mandar astronautas através das pressões gravitacionais dentro da anomalia e chegar ao outro lado.
Tudo isso considerado, tive problemas com o final, ao considerá-lo particularmente fantasioso, com a desintegração dos demais planetas do sistema solar e a criação de um gêmeo da Terra “ao nosso lado” – para o que vinha até então se apresentando como uma história inclinada ao hard. s.f., a coisa ficou over, ao meu ver. Ficou no ar – ao menos para mim – os aliens causavam a anomalia que em primeiro lugar trazia problemas para a Terra que eles puderam resolver, ou apenas aproveitaram o bonde, enquanto fenômeno natural? Isso tudo parece que segue as referências cinematográficas acima citadas, procurando também exibir todo um sense of wonder, mas me parece que erraram a mão.
Apesar disso, não deixa de ser interessante e visualmente bem caprichado, embora eu não sinta vontade particular de recomendar. Mas intrigou o bastante para produzir esta resenha.
Ad Vitam é uma série francesa de 2018 de FC e mistério policial, passando-se aproximadamente daqui a cem anos.
A TV inglesa já vinha nos dando séries "near future" há algum tempo: Years and Years é de 2019 e vai até os próximos 15 anos e fala da ascensão da extrema direita no país, enquanto que Humans (refilmagem de um original sueco) parte do princípio que andróides são uma tecnologia pronta e implementada na sociedade.
A sinopse do IMDB diz que
Em um futuro onde a tecnologia de regeneração permite humanos viverem indefinidamente, um policial e uma jovem problemática investigam uma estranha onda de suicídios juvenis.
Ou seja, a influência sobre a sociedade é essa tecnologia que permite um tipo de juventude eterna. Ela já está estabelecida, e é celebrada: logo no primeiro capítulo, temos flashes de como é esse mundo, onde o aniversário da pessoa mais idosa do mundo - uma mulher - é comemorado planeta afora, ao completar 161 anos de idade.
É uma sociedade aparentemente estável, pois o tratamento para a juventude é garantido a todos e a base da pirâmide social não parece apresentar pobreza em massa. A morte é uma ocorrência rara e desagradável, com cemitérios sendo desmanchados por falta de uso e de visitas.
A descoberta em 1998, no mundo real, das propriedades de rejuvenescimento de uma espécie de água-viva, a Turritopsis nutricula (a espécie em si havia sido catalogada já em 1848), leva à descoberta, na ficção, de uma variante chamada Turritopsis draculea, que é de onde o fenômeno é finalmente decifrado e convertido em um bem para a Humanidade.
A descoberta dessa água-viva (há uma intercambialidade aqui entre água-viva e medusa, mas deixemos como está) foi tão importante que, quase cem anos depois, ela é um marco cultural. Sempre há alguma menção, desde a primeiríssima cena do primeiro episódio, hologramas, etc.
Trailer de Ad Vitam.
Ao mesmo tempo, está a dias de acontecer um plebiscito que irá impor uma restrição à natalidade, pois em um mundo de juventude eterna, a necessidade de novas gerações diminui, portanto, como acolhê-las, já que aposentadoria não necessariamente é algo tido como garantido? Não bastasse, ainda é o mundo do aquecimento climático e escassez de recursos, onde a principal forma de alimento passa por insetos processados, e a carne é uma raridade. O número "quatro bilhões" para descrever a população global surge aqui e ali ao longo da série. É citado uma grande praga no passado que matou muita gente, o que pode ter contribuído para o número atual.
Mas o que não quer dizer que tudo são flores: pessoas têm um jeito todo... próprio... de se relacionar com o que lhes poderia ser positivo e seguro. O narcisismo pode levá-las a banhos diários de rejuvenescimento. Preservar perfeitamente um antigo restaurante só pelas memórias que traz. A morte pode ser um evento raro, mas a principal causa é o parricídio. Pessoas podem ter múltiplas carreiras ao longo de uma mesma vida, mas o tédio pode consumi-las. E, mesmo diante da chave da imortalidade e juventude, elas ainda podem querer mais.
O conflito social aqui passa por direitos do indivíduo, o que faz sentido ser uma série francesa, cuja sociedade sempre é engajada, conforme vemos mesmo hoje em noticiários. No caso, questões a respeito da jovialidade e imortalidade: a maioridade legal é de 30 anos, idade mínima para o rejuvenescimento funcionar em um organismo com segurança. Pessoas que, hoje em dia em nossa sociedade, são adultos aptos para o mercado de trabalho e constituírem família na série são condenados a uma adolescência tardia.
Christa e Darius: a improvável dupla investigando um crime, com o mérito de fugirem de todos os clichês.
E a essas tantas, entram os protagonistas: Darius e Christa são, respectivamente, um policial com aposentadoria compulsória em vista, após 99 anos de serviço ativo, com muita bagagem e um evento traumático em sua vida logo na época quando começaram a aplicação do rejuvenescimento que o assombra até hoje; e uma menor de 24 anos de idade que sobreviveu a um culto de suicídio jovem dez anos antes da nova onda, conforme na sinopse acima. Cada um em seu momento de vida, e a incerteza os norteia por igual.
Os personagens secundários dão a chance de ter mais reações a esta sociedade, como um policial que, aos 30 anos, reage muito mal ao presenciar alguém morrendo. Os pais de Christa, bem resolvidos na sociedade, ambos já em suas terceiras carreiras, com ela descobrem que ter um filho não é a coisa tão perfeitamente programada assim: ter uma água-viva de estimação é bem mais simples.
Christa e sua irmã adotiva.
A investigação passa por alguns níveis diferentes da complexidade da sociedade apresentada, até o epílogo onde um grande e anônimo oponente é apresentado. Como no gênero noir, é antes sobre sobrevivê-lo a realmente vencê-lo. E as coisas são como são.
Eu não pude deixar de notar que o tema de vampirismo possa ter sido abordado, de forma bastante sutil, mais às claras neste epílogo (não me entendam mal: é uma série de ficção-científica, ponto. O único outro gênero com que ela cruza é o policial).
Mas tomemos Drácula (cuja mini-série hiper-recente eu resenhei aqui) como exemplo. Talvez parte do sucesso da história de Drácula seja por um motivo que não sei se Bram Stoker estaria ciente... há uma crítica social embutida, ao se descrever alguém da aristocracia predando em cima de gente comum ao redor e sem controle. Pode ser visto, ainda, quando o velho não deixa que o novo vingue, dele servindo-se para se revigorar, às custas da vida do novo. Ou, a espécie da água-viva imaginária não seria draculea (em oposição a nutricula da vida real) à toa.
Drácula (2020) é a novíssima série disponível no Netflix que tem o mérito de trazer sangue fresco - piscadinha, piscadinha - ao tema de vampirismo e do personagem.
É uma alternate fiction, em que uma obra é contada de outra forma ou acrescentado um novo conteúdo: a obra assim mais conhecida até agora é a série em quadrinhos (esqueçam aquele filme horroroso) A Liga dos Cavalheiros Extraordinários, de Alan Moore e Kevin O'Neil.
A mini-série tem três capítulos somente, de coisa de 1:40 de duração, nos moldes de Sherlock, não por acaso também dos mesmos produtores, o que por tabela coloca Doctor Who no radar.
Os três episódios se dão em duas épocas e 3 cenários bem distintos: os dois primeiros se passam no final do Século XIX e o último agora em 2020, e no Castelo Drácula, a bordo do Deméter e na Londres atual.
E é aqui que entra a nova ideia: a exploração de certas lacunas deixadas em aberto na obra original, pois sendo um livro epistolar, Drácula apenas mostra os pontos de vista de quem testemunha, de perto ou de longe, o que está acontecendo, e nem sempre tudo é revelado, entre o trauma passado, algumas omissões por escolha própria ou falta de testemunho vivo. Ao procurar responder essas lacunas, os roteiristas dão prova do cuidado e esmerada atenção que têm com a obra original.
Claes Bang: o novo Drácula.
#1 The Rules of the Beast
O primeiro episódio explora, em dois sentidos, o Castelo Drácula, em estrutura antiga e labiríntica na qual Jonathan Harker se perde cada vez mais, da qual não é possível sobreviver para contar a história, em um crescendo de medo e desesperança. A situação sugere ao lugar uma mitologia própria, por assim dizer, o que o deixa bem mais interessante, com segredos que mesmo o senhor do castelo não está a par.
Das adaptações dos personagens originais, foi a de Harker que ficou mais interessante e é o primeiro com quem nos deparamos, engenhosamente confundível com Renfield. Ainda assim, até o final, é alguém que não cede ao mal que sobrepõe-se a ele - embora ele seja apenas humano, no fim das contas.
Temos ainda Mina Murray (Morfydd Clark, recém-saída de His Dark Materials como Irmã Clara), a noiva de Jonathan, pouco explorada, mais servindo para pontuar a tragédia do noivo - e foge do que se prova um fatídico encontro. O outro personagem de relevância aqui é um novo, uma repaginação de Abraham Van Helsing: Agatha Van Helsing, uma freira com problemas com a fé e de intelecto inquisitivo, caçadora do sobrenatural. Agatha está interrogando Jonathan, depois que, desfalecido e adoecido, ele é descoberto no rio que passa perto do Castelo Drácula e levado até o mosteiro romeno onde se dá também o episódio*.
#2 Blood Vessel
O segundo episódio conta fatídica viagem do Deméter, que trouxe Drácula para a Inglaterra. Com os hábitos alimentares do protagonista, sumiços vão ocorrendo, e um clima de 'whodunit?' é instalado: quase como um romance de Agatha Christie, onde o assassino em um ambiente controlado é deixado para ser investigado pelos convivas. Mas não há Poirot ou Marple aqui.
Os demais passageiros do navio e seus tripulantes não são somente desenvolvidos, são criados da estaca (piscadinha, piscadinha) zero, com histórias delineadas, personalidades e motivações bem definidas - tendo mais em comum do que inicialmente podem crer. Como em um primeiro momento do episódio é alertado, "cheio de personagens interessantes - não vá se apegar a nenhum."
Nesse episódio, uma nova ideia apresentada no inicial é melhor desenvolvida: sangue é vidas. Plural. Pelo sangue, Drácula é capaz de saber das histórias de quem se alimenta, e absorver suas habilidades, como um idioma. Mas mais do que isso, conforme se verá no terceiro episódio, sendo um conceito crucial (piscadinha, piscadinha) para a mini-série inteira. Vemos também sobre um pouco mais do que é o 'undead' nesse universo ficcional.
Faixa-bônus do segundo episódio: a presença da atriz Catherine Schell como a Duquesa Valeria. Ela foi uma das garotas de 007 - A Serviço de Sua Majestade (aquele, com o Lazenby) e trabalhou em Espaço: 1999 (1975-1977) no papel da alienígena Maya.
#3 The Dark Compass
O terceiro episódio é o que mais tem mudanças em relação à obra original: após uma ótima reviravolta ao final do segundo, Drácula desembarca na Inglaterra com 123 anos de atraso, em pleno agora. Aqui, da história original, temos a aparição do rico texano Quincey, Dr. Jack Seward e Lucy Westenra, todos no papel de jovens de seus 20 e poucos anos. Notei a ausência de Arthur Holmwood, o Lorde Godalming**, terceiro dos pretendentes de Lucy, talvez limado por falta de tempo, uma certa redundância com Quincey e mesmo o risco de um anacronismo.
O interessante aqui é que a correlação entre os personagens é 'fast and furious', com a banalização das relações no nível da superfície, entre quem quer o dinheiro de um e quem quer a beleza do outro. Jack é um apaixonado por Lucy, mesmo após terem tidos relações algumas vezes, mas ela é completamente descolada desse tipo de afeto, mais se deixando levar pelas promessas financeiras de Quincey, de quem vira noiva (na obra original ela se decide por Holmwood): e é exatamente por esse grau de descolamento afetivo que Drácula cresce o olho em cima.
Mas entra em cena uma outra novidade, a Fundação Jonathan Harker, uma joint-venture das famílias Murray e Van Helsing, para fins de pesquisa médica e outras que não são exatamente ortodoxas. Jack é um estagiário, aqui. Uma sobrinha-bisneta de Agatha (Abraham não é citado em nenhum momento), reaproveitando a mesma atriz (Dolly Wells, que com Clark estrela Orgulho, Preconceito e Zumbis), é uma das cabeças da fundação, a responsável no fim das contas por trazer Drácula à Inglaterra dos dias de hoje, aprisionando-o a muito custo... apenas para ser solto por um advogado de nome Renfield.
O episódio se encerra de maneira muito interessante, conseguindo uma explicação incrivelmente racional sobre o motivo de vampiros se comportarem mal diante de cruzes, luz solar, etc. e tal. E é dessa compreensão que sai a resolução do conflito, e mesmo um sentido de paz para quem viveu ansiando por 500 anos. Esse desenvolvimento foi, definitivamente, um dos pontos fortes da mini-série inteira.
E do Drácula?
Não conhecia o ator dinamarquês Claes Bang. Achei que seu Drácula corre para todos os lados, não é possível que a série não tenha sido tentada a homenagear o que veio antes. Podemos ver algo do Gary Oldman de Drácula de Bram Stoker (1992), talvez haja mesmo Bela Lugosi, e definitivamente eu vejo, ao menos, Christopher Lee - detalhe para a cena da cripta, no primeiro episódio: é a gomalina certa com os esgares certos.
Um legado.
Mas não pude deixar de lembrar do Jerry Dandridge de Chris Sarandon no A Hora do Espanto (1985) original, com o deboche sempre no canto da boca. Mas imagino que isso seja devido à escrita da série, definitivamente com a assinatura de Steven Moffat (Sherlock, Doctor Who), especialmente no primeiro episódio. A saber: respostas rápidas e engraçadinhas, pequenas reviravoltas, personagens excêntricos, nojinhos estratégicos e a sensação geral de que eu assistia uma iteração do Doutor contra o Mestre. Tudo feito de uma forma que, pessoalmente, estou um pouco cansado. Foi o que vi Doctor Who a se reduzir, mas isso é outra história. Ainda, o conceito de memória vinda pelo sangue me é, de alguma forma, similar ao da memória ancestral genética, que Moffat aplicou em sua ótima Jekyll (2007).
E do terror?
A maquiagem dos mortos-vivos funciona, os sustos fáceis estão lá, a antecipação e atmosfera necessárias também. Mas a dimensão do terror/horror vai além disso, como na relação de Harker/Renfield com insetos, gerando propositalmente um belo incômodo, assim como a promessa do sofrimento mesmo depois da morte: dado momento, em um cemitério, Drácula conta 9 'sofredores', mortos que não perderam a consciência, e tentam desesperadamente sair de seus caixões e túmulos.
E em uma das variantes mais bacanas da obra original foi a saída de Lucy Westenra da cripta... sendo que ela foi cremada. Há, segundo certas fontes na religião, que se esperar pelo menos 24h antes da cremação de um corpo, prazo necessário para a alma se desligar de seu corpo original e não sofrer com a queima do próprio - acho que vocês entenderam o recado.
Tem tudo para ser uma temporada somente, embora deixe questões bem em aberto, especialmente: qual é, afinal, a fonte de financiamento da Fundação Jonathan Harker? Mas gostaria, mesmo, é de saber que, se existe Drácula e ele passou o final do Século XIX mais XX indisponível para o mundo, e Lord Ruthven foi apenas um dândi que nunca foi um vampiro como no livro de Polidori; que obra popularizou o termo e o conceito de vampiro na cultura daquela realidade apresentada no filme?
No final das contas, apesar da minha implicância, o saldo é positivo. Drácula merecia uma presença melhor depois da terceira temporada de Penny Dreadful (2014-2016), do filme de 2014 e da série de 2013, e acho que aqui se conseguiu.
EDIT
Graças a alguns comentários aqui e ali, corrijo algumas imprecisões, ora no próprio texto, ora à parte, por aqui:
* Havia um mosteiro próximo ao Castelo Drácula, para onde originalmente Harker havia sido levado após cair no rio, fugindo de lá. Mina se encontra ali com ele e ambos se casam, tudo isto, originalmente no livro.
Há uma "irmã Agatha" também, mas ela é citada en passant.
** Pisquei e perdi: em sua carta no primeiro episódio, Mina descreve Holmwood como provável interesse, caso Jonathan "se distraia". Mas foi só.